domingo, 9 de junho de 2013

As Três Faces de Afonso Henriques. José Mattoso. «Qualquer que seja o fundamento histórico desta narrativa, ela transmite a impressão que do rei de Portugal tinham alguns membros da corte inglesa que aí ouviam falar dele. O que importa é que esta impressão não coincidia em nada com a que os cónegos de Santa Cruz…»


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O Rival dos Senhores Feudais
«(…) Os traidores, a fim de esconderem o crime, procuraram comportar-se com o jovem […] com todos os sinais da benevolência e conseguiram conquistar progressivamente a sua simpatia com falsos gestos de amizade. Pretextando uma partida de caça, levaram-no à parte mais escondida do bosque e ao ponto mais inacessível de um lugar desabitado; aí enganaram-no e abandonaram-no aos lobos e às serpentes, e só deram a conhecer o facto àquele que, enganado, o tinha ordenado. Ele, então, não tendo ainda esquecido a cólera, corre a casa irrompe no quarto da cama, lugar que não conhecia e não frequentava, expulsa os que aí estavam e atira-se furioso sobre a rainha que tinha ficado sozinha, grávida e já perto do parto, e cobrindo-a de socos e pontapés, perpetra de uma só vez dois homicídios.
Tendo então convocado em particular os odiosos cúmplices da sua má atenção, começou a gabar-se e vangloriar-se do seu tríplice delito, como se tivesse procedido a uma justa vingança. Eles adularam-no com grandes louvores, como a um homem corajoso e forte, para manterem na estultícia o que tinham feito estulto. A insídia não descobriu até que começou a ser contada; mas sendo certo, como se diz, que um crime secreto não se pode esconder durante muito tempo, acabou por chegar aos ouvidos do povo, e quanto mais baixas eram as vozes por medo do tirano, tanto mais inaceitável se achava a infâmia referida em contínuos murmúrios […] Quando o rei notou a corte sombria e em insólito silêncio, e a cidade, sempre que saía, tão hostil como a corte, instintivamente receosoi da sua fama, deu-se conta do erro cometido quando já era demasiado tarde. Foi informado por muitos da inveja que tinha seduzido os seus traidores e sofreu por isso inconsolavelmente. Então, vingou-se com uma ira finalmente justa daqueles que tinham concebido e executado o criminoso plano, e, depois de os ter cegado e castrado, condenando-os assim à noite perpétua e à abstinência dos prazeres carnais, abandonou-os a uma vida semelhante à morte.
Esta narrativa extraordinária, escrita pelos anos 1180-1193, pode até ser totalmente fictícia. Mas a sua atribuição ao rei de Portugal, cujos excessos e violências impressionavam tanto os cavaleiros de Coimbra, não só, evidentemente, fortuita. Pelo lado da cólera e da brutalidade aproxima-se do protagonista da Gesta. Mas exprime também uma imagem semelhante à que era transmitida pelos fidalgos do Norte de Portugal, isto é de um rei fortemente influenciável pelas intrigas da corte, cujas acções não agradavam a muitos dos seus súbditos e que tomava decisões tão insensatas como dar em casamento a um magnat que o insultava a filha já casada com outro. Qualquer que seja o fundamento histórico desta narrativa, ela transmite a impressão que do rei de Portugal tinham alguns membros da corte inglesa que aí ouviam falar dele. O que importa é que esta impressão não coincidia em nada com a que os cónegos de Santa Cruz deixaram para a posteridade e que apagou todas as outras.

Três retratos contrastantes
Os cónegos regrantes de Santa Cruz de Coimbra, os cavaleiros da mesma cidade e os ricos-homens do Norte não tinham, portanto, a mesma opinião acerca de Afonso Henriques. As suas reacções contrastantes perante o rei eram suficientemente fortes para transporem as fronteiras de Portugal e marcaram os relatos que aí se faziam das suas acções. Os segundos e terceiros estavam longe de partilhar a admiração que os primeiros mostraram, pelas razões que vimos, para com as virtudes religiosas do monarca. Três meios sociais, três imagens diferentes, Indício evidente de que a fundação da nacionalidade ou a política do nosso primeiro rei não obtiveram a unanimidade de opiniões nem o seguimento pressuroso e entusiástico que tantos autores imaginaram ingenuamente, em particular, Luís Gonzaga Azevedo.
Indício, ainda, de que, as gerações seguintes, imediatamente posteriores à de Afonso Henriques, também não havia um acordo fácil a respeito da sua memória. Prova, finalmente, de que o retrato desenhado pelo notário de Santa Cruz de Coimbra era tão influenciado pelos esquemas do seu imaginário como o traçado pelos cavaleiros de Coimbra ou o transmitido pelos nobres de Entre Douro e Minho. Afinal cada um deles à sua maneira traçava do primeiro rei de Portugal a imagem que convinha ao seu grupo e que, marcando uma posição face ao monarca, exprimia uma forma de identificação do próprio grupo, ou que, a partir delas, influenciava a imaginação de autores longínquos, mais impressionados pelos aspectos bizarros do que ouviam dizer do que pessoalmente interessados no seu sentido». In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa, ISSN 0871-7486.

Cortesia de Edições Cosmos/JDACT