sábado, 15 de junho de 2013

Os Passos em Volta. Leituras. Herberto Helder. «Está com um pouco de vergonha de si mesmo, porque pensou durante cinco minutos que nem toda a gente tem o direito de estar presa. Dorme num poço situado sob as mais belas estrelas…»

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Polícia
«(…) Sou uma criatura sã, digo. Sou um bêbado. Vou dormir vestido vermelho, vou morrer. Mas não está ninguém a meu lado. A máquina bate as nossas estúpidas palavras. O inspector estende as mãos exangues e parece cada vez mais inteligente. – Claro, diz. - Nunca pretendi chamar-lhe comunista. Imagino apenas que, por ingenuidade, por exactamente não ser comunista, o senhor tenha colaborado com eles. Por ingenuidade. Por nada saber. Vê onde quero chegar? Só desejamos que diga os nomes. Os nomes? Que nomes? Três horas à volta desta porcaria. Depois mandam-me embora. A cela fica no segundo piso, a meio de um corredor frio, alumiado por algumas lâmpadas amareladas. De um lado e outro existem celas, quase todas vazias agora, pois fizeram há pouco tempo transferência de presos para outras cadeias. São celas pequenas e escuras, de cimento. Encostada à parede, a tarimba com um cobertor. Ao canto, o pote onde se urina e defeca. O silêncio é completo através do canal do corredor. Nada disto me faz grande mal. Talvez o silêncio me impressione, mas depois deixo de senti-lo. Começo a pensar e já não tenho consciência desse frio silêncio amarelo em que tudo se consome. Vejo-me no espelho a brincar com um cálice vazio na ponta dos dedos. Mas o olhar apaga-se de súbito, e as pálpebras batem. - Tenho medo, digo.

Uma cara olha-me atonitamente. É agora o vestido vermelho com uma idiota flor branca por cima: a cabeça. - O quê? - Não, não é de ser preso outra vez que tenho medo. Peço-lhe que aceite mais um copo de cerveja, minha senhora. Gostaria de sentir-me solidário com alguém. - Ouvem?! - exclama ela para as outras. - Este gajo tem uma bêbeda porreira. Peço-lhe que aceite mais um copo de cerveja, minha senhora. Pois não, meu caro senhor. Amanda-me aí uma imperial bem tirada, ó Juca! Vejo dois copos de cerveja sobre o balcão e agarro num deles. O frio sobe-me pelos dedos. Daqui a pouco não sentirei as mãos: estarão adormecidas. Suponho que rio baixinho. Foi isto que me fizeram. Estou cheio de frio. Durmo. Nunca mais acordarei. – Ouça, digo para ninguém. - Não me bateram. Foram amáveis durante os interrogatórios. Ele tinha mesmo uma cara honesta. Às vezes pergunto: quem sabe se não seria uma pessoa honesta?

Alguém senta-se no banco ao lado e pede qualquer coisa. - Sou um homem honesto, digo ao meu novo vizinho. - Procuro sê-lo. - O vizinho sorri, condescendente. Pisca o olho ao empregado, que também sorri. - Agora não sei bem se isto é honestidade. Mas de qualquer modo eu nunca pertenceria à polícia. O outro pertencia, e pareceu-me honesto. Que sentido há nisto? - É que ele não era um homem honesto. - E o vizinho dá uma gargalhada. - Não? - Julgo que sonho. - Claro, era um assassino. Um assassino honesto. E de novo a música louca enche tudo. Bebo depressa. Sinto-me no fundo de uma turbulenta e exasperada corrupção. Calo-me para lembrar melhor. Na terceira noite de cadeia estive a pensar que não era um revoltado, mas um simples empregado de escritório pouco imaginativo. Não merecia estar preso. Talvez fosse bom merecê-lo. Um momento mais, e estaria perto da fraternidade. Mas eu era um pequeno homem honesto. Da espécie de honestidade que não ligava com a do inspector só talvez por ser inerme. Uma vil honestidade passiva. Anuidora, silenciosa. Que não desejava incómodos. Apenas por não ter um temperamento activo é que eu nunca seria da polícia? Bem sei, é absurdo. Estou doente. Não devo pensar nisto. - Bebemos mais uma cerveja?

Não está ninguém para beber. Continuo a beber só. E rio baixinho, um pequeno riso mortificado e cruel por trás do copo enevoado da cerveja. Por trás ainda da minha vida de burguês destruída pela peste. Sempre dormi bem. Hoje imagino que, durante todos os tranquilos sonos da minha vida, se preparavam e realizavam os crimes. Dormi como um justo. Não é assim que se diz? Como se fosse um justo. Mas um estremecimento qualquer entrara no meu sono, um rato entrara no sono. Conseguem imaginar o que se passou? Um empregado de escritório está metido numa cela por suspeitas políticas. É tudo infundado, e ele acredita que o caso se há-de esclarecer. Por isso dorme tranquilamente como durante a liberdade. Está com um pouco de vergonha de si mesmo, porque pensou durante cinco minutos que nem toda a gente tem o direito de estar presa. Dorme num poço situado sob as mais belas estrelas (imagem esta de agora, quero dizer: poesia irresponsável de bêbado). Serenidade por toda a parte. Serenidade cósmica, prisional, pessoal.

Fora o rato que trabalhava no escuro da serenidade. E então acordo. Não acordo como se o rato estivesse a roer. Acordo por explosão. É um grito. Depois, vários ruídos. Um rumor espalhado e, no centro, esse grito, alto, material como ume agulha de gelo. Uma coisa impossivelmente terrífica Um grito humano. E só distingo a penumbra amarela que vem do corredor. O silêncio contamina tudo, o frio cerra-me. E a luz amarela estende-se pelo chão e atinge o pote de urina, que fede. Então sinto uma dor na barriga e corro pare o pote». In Herberto Helder, Os Passos em Volta, Assírio & Alvim, 2009, ISBN 978-972-37-0119-7.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT