terça-feira, 18 de junho de 2013

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «Pela margem esquerda a cordilheira do Cabo corre na mesma direcção até ao extremo oriental de Pangim, desviando-se para o sul e cingindo as várzeas de Santa Cruz e Mercês, para seguir de novo pela vila de Ribandar até ao extremo oriental da antiga cidade»

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Estão pelos telhados e janelas velhos e moços, donas e donzelas. In Camões

Goa
«(…) Se passa comandando uma força, as damas o vão admirar à janela, recebendo graciosamente o cumprimento, que ele, com donaire e marcial ufania lhe faz, levando os copos da espada ao rosto. O mesmo rompante, o mesmo ar de triunfo junto das damas, Parecendo esmagar meio mundo com o seu olhar cioso e trémulo de íntimos júbilos. Não fala sem bater nos copos da espada, saracoteando-se ruidosamente de um lado Pare outro, tudo para se mostrar formoso aos olhos da dama dos seus amores. Algumas vezes, principalmente desde que se não armam cavaleiros no exército, não prima pelo bom gosto e chega a ser ridículo, ridiculíssimo.
As damas, pelo contrário, são em tudo portuguesas: tristes e meigas. Quase que não falam, e ao passar-se em atelliers divisam-se pelas portinholas rostos pálidos, de olhares tímidos e mornos. Ainda assim, denota-se-lhes o espírito altivo de antigas fidalgas quando pelas salas rastejam a longa cauda de seus vestidos. Em família, a alegria quase mística da portuguesa, a serenidade do gesto e meiguice no olhar, reveste-as de um encanto irresistível, fascinador.

Tínhamos deixado o Convento do Cabo, hoje palácio de recreio dos governadores; o Campal, o melhor passeio de Pangim; Reis Magos e Aguada, dobrados sobre o rio; Caranzalem, com as suas larguíssimas e brancas praias, para onde a elite da capital vai passar a estação calmosa. Do outro lado, para o sul da ilha, entre a península de Mormugão e Dona Paula, tudo está mudado. É uma cidade nova, cheia de fumo , a baía coalhada de vapores, constantes apitos, guinchos dos guindastes, uma babel de línguas e o eterno, oh! inglês, parvo de tanta glória, à nossa custa. Deixemo-lo em paz, o nosso fiel aliado. Espraiemos a nossa vista pelas margens do Mandovi, serenas e belas.

A actual capital da Índia Portuguesa, Pangim, transformaram-na, de um paul, que era, o conde d'Ega, Manuel de Portugal, conde de Torres Novas e o contra-almirante Caetano Albuquerque. Desembarca-se em Pangim, escreve o viajante francês Victor Fontanier num belo trapiche recentemente construído. Numerosas embarcações estão ocupadas em carregar e descarregar mercadorias; de todos os lados se vêm levantar novas construções. Púnhamos pé em terra: as ruas são largas e simetricamente alinhadas; uma considerável população percorre-as num movimento estranho e não usual naqueles climas; tudo, enfim, se alia para dar à cidade um aspecto mais europeu que asiático.
Os prédios caiados de branco e amarelo, independentes, deitando sobre o Mandovi rasgadas janelas de feitio das dos nossos conventos antigos, umas de ostras, outras de vidros com sacadas de madeira, cobertas no Inverno com reparos de ola, dão à cidade o aspecto de uma pitoresca vila. As ruas como os tectos, nos meses de Junho e Julho, cobrem-se de relva e matizam-se de pirilampos que, no escuro da noite, parecem bocados arrancados ao céu. À beira-mar o palácio da primeira autoridade, hoje quase abandonado pelo do Cabo, é o tipo mais simbólico de como as nossas coisas andam: sempre a renovar-se e sempre velho. Supre tudo, porém, a galeria dos vice-reis, quadros baços e gigantescos, que mais parecem uns trogloditas do que as épicas figuras dos nossos heróis. Ao extremo ocidental um mercado, visconde de Ribandar, de uma beleza e de uma arquitectura que faria parar de saudade, se por ali tivesse a ventura de passar, um descendente dos faraós; no largo das Sete Janelas, sobre um pedestal pesado e informe, ergue-se a estátua de Albuquerque terribil: um colosso de pedra preta, e sem nariz. Uma cúpula rotunda, sustentada por uns pilares dóricos, resguarda a cabeça do conquistador de Goa das chuvas torrenciais dos trópicos, à maneira dos ídolos pagãos que se encontram na Índia à entrada dos pagodes. Na inauguração desta estátua, um veterano da liberdade, que então governava a Índia, exclama assim nuns versos inflamados:

Grita-lhe, e verás seu ardimento...
Arranca a espada que inda tens em punho.

Por toda a parte, este patriotismo banal de exclamações e reticências! Deixemos os estudantes do liceu garatujar pelas paredes do monumento deste que, de há muito, deveria ter arrancado da espada, e subamos o Mandovi, que muita vez escutara os saudosos queixumes do épico português. O cristalino das águas retratam as esguias palmeiras e o sombreado bambual, que ornam a fralda e as vertentes dos outeiros de Verém e Betim. A cordilheira, que corre da Aguada paralela ao rio pela margem direita, desvia-se num ponto em direcção nordeste, exactamente no sítio onde se levanta a igreja da Penha de França, e onde o rio entra por um braço pelas terras de Bardez. A fachada dessa igreja, correcta, nívea, sobressaindo num fundo verde e plumoso da encosta, com as escadarias que os salgueiros mal deixam ver, perece de longe um navio que desemboca para o rio a pano cheio. Pela margem esquerda a cordilheira do Cabo corre na mesma direcção até ao extremo oriental de Pangim, desviando-se para o sul e cingindo as várzeas de Santa Cruz e Mercês, para seguir de novo pela vila de Ribandar até ao extremo oriental da antiga cidade».

In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de Ésquilo/JDACT