sábado, 15 de junho de 2013

Uma Biografia Política. ‘Daniel’. O Jovem Revolucionário. Álvaro Cunhal. Pacheco Pereira. «Toda a literatura que um jovem ilustrado lia não tinha outro tema que não fosse esta obrigação do compromisso, o dever de participar, a necessidade de cerrar fileiras e a obrigação de ser fiel aos seus ideais»

Teria 99 anos de idade. Morreu num dia 13 de Junho
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«(…) Estava-se a entrar numa nova dimensão da política. As ideias do século não eram para os indivíduos, eram feitas para as grandes massas, para as multidões nos comícios, para uma forma de paixão arregimentada e sectária, ao mesmo tempo anónima e ultrapessoalizada nos líderes, (…) no culto da personalidade dos pais dos povos e dos homens de aço. De Itália à Alemanha, do Japão à URSS, em toda a Europa, na China e na Índia, todos os ismos estão à solta. As guerras civis de ideologia preparam-se ou multiplicam-se, as guerras de expansão e império vão atravessar todo o mundo. De Espanha à Abissínia, os homens vão pagar um preço elevado em sofrimento e miséria em nome de ideias. Mas essas ideias são ideais para a geração nascente, e ideais irrecusáveis.
O impacto dessas novas ideias políticas nascidas no pós-guerra, da crise económica e social, é enorme. Comunismo e fascismo não deixavam ninguém indiferente, e as formas moderadas burguesas da política democrática eram tão violentamente atacadas por uns como por outros. O cabeçalho da revista Ordem Nova, dirigida por Marcello Caetano, que se proclamava antiliberal, antidemocrática, anticapitalista, anticomunista, antitotalitária e antimaçónica, traduz bem, no seu radicalismo, o espírito da época entre as duas guerras. Há dois campos, há dois exércitos, e cada um tem que escolher, alistar-se e combater. Tudo ia no mesmo sentido. A formação dos indivíduos, a formação integral do indivíduo, como escrevera Bento de Jesus Caraça, fazia-se pelo compromisso e pela acção. Não estávamos em tempos de contemplação, e, na cultura política emergente, polarizada por estes contrários que se eliminavam um ao outro, a violência era inevitável.
Um jovem formado nestes anos é inevitavelmente dilacerado por uma política que se apresenta como total, comprometedora, pretendendo arrancar todos os homens, do homem qualquer ao intelectual, à passividade e à inacção. Toda a literatura que um jovem ilustrado lia não tinha outro tema que não fosse esta obrigação do compromisso, o dever de participar, a necessidade de cerrar fileiras e a obrigação de ser fiel aos seus ideais. Os intelectuais que marcaram a juventude na década de trinta comprometeram-se quase todos na luta política, e esse compromisso é a marca do seu tempo. Foi nestes anos que a herança de Zola se viu integralmente cumprida, já não na figura de uma atitude de responsabilidade individual face a valores ou princípios, mas como um acto de pertença a um destino colectivo. Esta diferença vai ser essencial porque o compromisso, agora, é com a História, com uma ou outra interpretação contraditória da História.
Quer sejam o sangue e a raça, ou a classe e a revolução, está à solta entre os jovens uma força profunda que falava em nome da História. Quando, mais tarde, se vêm juntar os romances sociais de Jorge Amado, de Gorki, de Istrati, os romancistas americanos da Depressão, com as suas veementes denúncias da injustiça, da exploração, da realidade trágica da miséria, encontram o terreno preparado pelos autores do compromisso, os próceres literários da obrigação moral do envolvimento. Uns incentivam a atitude, outros fornecem a causa. O resultado é, em primeiro lugar a atitude de obrigação face à História, a que se acrescenta depois a consciência da desigualdade e da pobreza. Antes de serem revoltados sociais, os jovens que nestes anos se aproximam do comunismo aceitam uma atitude face à Historia, que nalguns deles evolui para uma filosofia face à História: a da predestinação marxista».

In Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal, Uma Biografia Política, ‘Daniel’, O Jovem Revolucionário, 1913-1941, Temas e Debates, Lisboa, 1999, ISBN 972-759-150-7.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT