domingo, 23 de junho de 2013

Marânus. Teixeira de Pascoaes. Prefácio de Eduardo Lourenço. «Em Pascoaes os contrários não se opõem e a contradição não exige múltiplos “eus” para suportar inconciliáveis visões do universo. Tudo é uma só realidade, misteriosamente a mesma e o seu contrário»

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Um só homem possui todo o mundo, a lua enche de luar todo o mar... In Marânus

Prefácio 
«O mundo de Pascoaes é um mundo poético e visionariamente saturado, o único que goza, como o de Dante ou de Milton, desta propriedade em língua portuguesa. O que ele tem que dizer é indizível mas ele di-lo sublimemente, e redi-lo, sem que a sua sublimidade redundante o diminua, como se a sua inspiração e pressa manasse, sem metáfora, de uma fonte inesgotável. O que na sua vontade de ruptura o genial Sá-Carneiro, supunha pouca arte era música nunca antes tão magistralmente orquestrada com todos os ecos da nossa lírica e de toda a tradição ocidental, de Homero a Dante, de Milton a Goethe e Hugo. Por ventura mais do que todas as vozes se ouve nela a de Camões, renovada na forma por João de Deus e, no fundo, por Antero, relido por Nobre e Junqueiro. Esta sua familiaridade com a lírica do Ocidente, incluída a do texto bíblico, está presente no seu génio ao mesmo tempo épico, elegíaco e bucólico, não em momentos sucessivos mas simultaneamente, e nenhum traço de dependência resiste ao acto transfigurador da sua visão que melhor será intitular, vidência como justamente o faz Cesariny. Se da essência da Modernidade é inseparável a dispersão de Sá-Carneiro ou a fragmentação irremível de Pessoa, Pascoaes está fora da Modernidade assim concebida. Mas se da aparência sobretudo formal passarmos a uma ordem de considerações de mais vasto alcance, não é difícil perceber que a poesia de Pascoaes foi a mais bem sucedida no combate espiritual, a aventura mais  audaciosa da imaginação lusíada para recriar um mundo novo, uma visão autónoma da existência e da vida no interior de uma cultura tão interiormente problemática como a de Pessoa ou Sá-Carneiro.
A maravilhosa boa consciência poética de Pascoaes, a última que conheceu essa inocência, nada retira à íntima tragicidade da sua visão do mundo, de que a mitologia da Saudade é, ao mesmo tempo, a expressão e a sublimação ímpar. Como a de Pessoa, a visão de Pascoaes está suspensa de uma Ausência, mas de uma ausência sensível, diversa do nada proliferante de que a de Pessoa é o símbolo. Por vezes essa ausência sensível, aquela que a Noite originária representa, suscita a Pascoaes invocações que parecem gémeas das que mais tarde inundarão os poemas de Álvaro de Campos e em particular os conhecidos excertos de Uma Ode à Noite:

Ó Noite do que as noites mais antigas!

Só que Pascoaes é um poeta que procede ou visiona a realidade às avessas de Pessoa, numa perspectiva redentora: o negativo transfigura-se sempre em positivo ou á a sua condição. Essa Noite universal, de recorte anteriano, tal como a do autor dos Sonetos é ambiguamente noite de horror e noite criadora e maternal! Esta função maternante no sentido de remédio último para a dor da existência, de raiz romântica, também se encontra em Pessoa mas não é objecto das litanias criadoras que Pascoaes lhe dedica, fazendo da Noite mãe a origem de tudo:

Ó Noite do que as noites mais antigas!
Manto funéreo e negro, a desdobrar-se
em estrelas, em mundos, e universos,
em nevoeiros de vidas a espalhar-se...
És a sombra genésica e fecunda
de Deus!
Ó via-láctea! Ó sol ardente!
Monstro de luz, abismo de alvorada!
Glória do dia e queda do poente!

Em Pascoaes os contrários não se opõem e a contradição não exige múltiplos eus para suportar inconciliáveis visões do universo. Tudo é uma só realidade, misteriosamente a mesma e o seu contrário. É qualquer coisa de diverso das correspondências de Baudelaire, realidades análogas mas não intrinsecamente solidárias na sua aparente oposição. O monstro de luz é abismo de alvoradas, é Roma, Jerusalém, como Platão é Nero. Seria um erro ver nestas telescopagens metafóricas um qualquer revivalismo das antigas agudezas gongóricas. Essas associações relâmpagos são visão do mundo, simples expressão de uma realidade originariamente caótica e paradoxalmente criadora, sombra de Deus».

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT