sexta-feira, 14 de junho de 2013

Atheneu Commercial de Lisboa. Conferência Pública. Noite de 15 de Julho de 1900. Alexandre Herculano. Diogo Rosa Machado. «Se Herculano, além de ser um grande poeta, foi um dos prosadores mais poéticos e eloquentes que têm existido em todos os séculos, que admira que o seu espirito fosse eminentemente religioso»

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«(…) Mas em nenhuma litteratura da antiguidade se exprimiu o sentimento religioso com tanta simplicidade, força, doçura, nobreza e sublimidade como na litteratura hebraica. Ainda nenhum escriptor antigo ou moderno conseguiu ser mais sublime do que Isaías, nem mais sentimental e terno do que David, nem mais magestoso do que Moysés, nem mais melancólico do que Jeremias. Na edade média apparece-nos o sublime Dante, o cantor do catholicismo, produzindo essa obra prima intitulada A Divina Comedia, que levará o nome do seu auctor á mais remota posteridade e que é uma das mais bellas producções do espirito humano.
Nos tempos modernos foi o sentimento religioso que inspirou a Milton a sua maravilhosa e sublime epopeia O Paraizo Perdido, a Bossuet as suas eloquentes Orações fúnebres e a Pascal os seus profundos e magestosos Pensamentos. No século dezoito, nesse século philosophico e revolucionário em que fizeram grandes progressos o scepticismo e a incredulidade e se propagaram com immensa actividade as doutrinas que deviam produzir as grandes tempestades politicas e sociaes, nesse grande século, ao qual devemos comtudo immensos benefícios, João Jacques Rousseau, um dos mais eloquentes prosadores franceses, defendeu com muito enthusiasmo a existência de Deus e a immortalidade da alma e exaltou a moral evangélica, distinguindo-se pelo seu deísmo ardente, que elle manifestou num estylo tão suave e harmonioso que faz lembrar o de Platão.
No século dezanove, o século dos estudos históricos e da pbilosophia positiva, vemos o sentimento religioso expresso com uma vivacidade admirável nas obras de Victor Hugo, Lamartine, Chateaubriand, Manzoni, Walter Scott, Lamennais, Renan, Thierry, Guizot, Michelet, Flammarion, Tolstoi e muitos outros. Este sentimento sublime do coração humano existe não só nos que professam o christianismo ou qualquer outra religião positiva mas também em todos os sectários da religião natural. Como a religião tem raizes profundas no coração do homem, hão de existir sempre, por mais alto que se eleve a sua intelligencia, almas apaixonadas que se comprazam em estar abrasadas no fogo sagrado do sentimento religioso. Eu não creio que este venha a extinguir-se no seio da humanidade mas estou profundamente convicto de que com o progresso da civilização a religião individual se ha de tornar cada vez mais pura, isto é, se ha de ir libertando das superstições com que a têm deturpado a imaginação e a ignorância dos povos e os interesses sacerdotaes. Embora se derribassem os altares e se destruíssem os templos, a religiosidade havia de existir perpetuamente no coração do homem porque bastaria a contemplação da natureza magestosa e bella que nos circumda para despertar em nós a idéa mais sublime a que se elevou a intelligencia humana, a idéa de Deus.
Se Herculano, além de ser um grande poeta, foi um dos prosadores mais poéticos e eloquentes que têm existido em todos os séculos, que admira que o seu espirito fosse eminentemente religioso. Todas as crenças são dignas do máximo respeito comtanto que haja sinceridade naquelles que as professam. O homem que não respeita as opiniões alheias é inimigo da tolerância e da liberdade, por mais avançadas que parecam as suas idéas. O fanatismo philosophico é para mim tão reprehensivel como o fanatismo religioso. Considero pois injusto, absurdo e ridículo o deprimir Herculano por causa da sua paixão ardente pelo christianismo, da sua crença em Deus e na immortalidade da alma, como o têm feito alguns d'esses críticos superficiaes ou mal intencionados que costumam apparecer em todas as epochas para depreciar as obras mais excellentes que tem produzido o génio do homem.
E indubitável que o christianismo exerceu uma influencia benéfica no génio litterario de Herculano. Foi nas paginas sublimes da Bíblia que Herculano bebeu uma parte das suas inspirações; foi no estylo bíblico que elle escreveu o terrível e eloquente opusculo A Voz do propheta e os sublimes e dolorosos cantos do presbytero de Carteia, que fazem parte do seu mais bello e magestoso romance, a que deu o titulo de Eurico. Mas, no emprego do estylo bíblico, Herculano, longe de ser um simples imitador, revelou sempre a poderosa originalidade que caracteriza todos os seus escriptos. Theophilo Braga, na sua Historia do romantismo, diz que Herculano não se elevou acima da metaphysica christã; mas o distincto professor esqueceu-se de accrescentar que no tempo de Herculano a maior parte dos grandes espíritos que tanto illustraram o seu século nos paizes mais adiantados da Europa e da America, se achavam no mesmo estado psychologico e que a philosophia positiva ainda não conseguiu derribar o espiritualismo.
Em todas as escolas philosophicas tem havido pensadores profundos. O espiritualismo christão não impediu Herculano de ser um dos mais eminentes historiadores do seu século, assim como não tirou mais modernamente ao immortal Pasteur a glória de ser um sábio de primeira ordem, um dos maiores bemfeitores da humanidade. Não obstante as grandes modificações por que passou o altíssimo espirito de Victor Hugo, eu considero o seu christianismo, embora philosophico, incomparavelmente mais puro do que o de Torquemada e S. Domingos de Gusmão, cujo procedimento fanático estava em completo antagonismo com os princípios sublimes, com as máximas sacrosantas proclamadas no Evangelho. Victor Hugo, apesar do seu espiritualismo ardente e do seu enthusiasmo pela moral evangélica, foi um dos escriptores mais eloquentes e philosophicos que a França tem produzido. Se Guizot e Thierry na França, Cantu na Itália, Maccaulay na Inglaterra, Herder e Niebuhr na Allemanha, Prescott nos Estados-Unidos da America puderam ser ao mesmo tempo historiadores de primeira ordem e espiritualistas christãos, porque não poderia succeder o mesmo em Portugal a Alexandre Herculano?
Condemnar este grande homem pelo seu espiritualismo ardente e pelas suas crenças religiosas seria o mesmo que condemnar a sua epocha e a escola romântica de que elle foi um dos mais distinctos ornamentos, seria faltar á justiça e imparcialidade que deve ter o verdadeiro critico».

In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.

Cortesia de L. Tavares Cardoso & Irmão/JDACT