domingo, 16 de junho de 2013

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «...e isso, senhora, faço eu mais por vos comprazer e fazer satisfação, que por me parecer razão que o assim faça. Claro como água. A prova final. A experiência final. A resposta, essa, adivinhava-a certamente, enquanto, com o coração oprimido, escrevia as derradeiras palavras à filha que tanto amava»

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A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) Os cabelos embranqueciam-lhe nas têmporas e na barba curta que lhe emoldurava o rosto no geral composto, sereno, onde brilhavam aqueles mansos e inteligentes olhos muito azuis mas onde geralmente se vislumbrava uma certa indecisão tão característica dos fortes, daqueles que possuem uma profunda consciência quer da sua força quer das suas fraquezas e pensam muito nas opções a tomar. Era tenaz mas paciente e homem de honra, de juramentos sagrados e secretos. Irmão da Janeteira, irmão de Cruz de D. Álvaro, ligava-os uma fraternidade mais forte que a do sangue. Mas ceder? Ceder como um cobarde?
De 22 a 24 de Maio reúne-se o Conselho do Rei. O Regente Pedro é declarado rebelde. Para mais o afrontar, é-lhe fixada a residência em Coimbra e dado um prazo como a um qualquer inimigo da Nação e da Coroa, a um estrangeiro, para que demonstre por palavras e factos a sua obediência. Exige-se-lhe que peça perdão a El Rei. Pedro fica siderado. Pensar na sua vida, nos filhos, na mulher, no seu destino que, de repente, lhe voltava as costas? Naquela filha amada, jovem, inexperiente, ao lado de um marido que lhe demonstrava um afecto absorvente, mas seria ele suficiente? Que agonias experimentava D. Isabel, a insegura e infeliz Rainha de Portugal, assistindo ao drama que, na Corte, prepara o fim do pai, a tragédia da sua família? Da mãe, dos irmãos... Sabe-se que ela tentou uma aproximação.
Certamente, numa das noites em que o Rei compartilhava o leito com ela, tentou acalmá-lo, rodear o mal, dissipar-lhe as suspeitas. Na realidade, o libelo contra o pai era terrível! O Conselho não encontrava palavras para defender o pai da Rainha. O Infante Henrique calara-se praticamente e Afonso V mandara as suas cartas a todos os que estavam do lado do tio, até os seus servidores, qualquer que fosse o seu estado ou condição, para o abandonarem. Foram fixadas nas praças de Santarém, publicadas pelos notários em Coimbra… para onde mandou Lourenço Abril, seu escrivão de Câmara, que foi interceptado pelos homens do Infante e depois levado até ele. O Regente Pedro respondeu ao escrivão que dissesse ao Rei que tomaria para si a provisão real, mas não a publicaria:
  • Dizei a El Rei meu senhor que eu só torno e retenho em mim esta sua provisão e que não hei por seu serviço e minha honra publicar em tal tempo.
Rebeldia? Mas o Infante não dizia por seu serviço? Era uma forma de cinismo? Não. Tratava-se de um acto e um serviço do Rei. Será que o jovem Afonso teria tomado consciência da extensão da sua atitude? Seria que Pedro apenas desejava esconder de seus colaboradores e soldados a verdade? Que perdera o apoio real, era tratado como um vil traidor e não aceitava o juízo? Talvez ele, nesse instante, tenha dito para si, como costumava fazer:
  • Isso fique a Deus e a sua (e minha) consciência…
D. Isabel, em ânsias, ajoelhou-se aos pés do Rei seu marido. Conhecia o que podia acontecer ao pai condenado à morte, prisão perpétua ou o desterro e sabia que o pai apenas, e em derradeiro recurso, só aceitaria a primeira. Sabia mais. Sabia que ele a escolheria e obrigaria os seus inimigos, inclusive o próprio genro, a praticar o acto final. A mãe escreveu-lhe? Ter-lhe-ia a outra Isabel, a duquesa de Coimbra, ainda nova, temendo pelo seu futuro e o dos filhos, já para não falar do marido que tanto amava e conhecia, enviado um recado, uma palavra? E seria necessário? Aquelas duas mulheres, naquele instante, mãe e filha, viviam o mesmo suplício sem conseguir encontrar o caminho que levasse a bom porto o frágil barco em que a teimosia do Infante, as suas razões e defeitos e os ódios e invejas de seus inimigos, e algumas das suas muitas qualidades, tinham construído ao longo dos anos. D. Isabel pediu o perdão para o pai. Penso que não lhe restava mais nada. A culpa estava determinada, descrita, acatada pelo Conselho. O Infante era réu.
Negá-lo de nada valia. Só restava à pobre Rainha solicitar o perdão. Afonso não perdoou de imediato. Tentou justificar-se:
  • Conheço tudo o que dizeis, senhora, mas como posso eu ser brando para vosso pai se ele é tão teimoso e duro no que lhe requeri, não quer conhecer as minhas razões nem se arrepender, pelo contrário, persiste nos seus erros? Mandei-lhe pedir as armas, as minhas armas. Não mas quis entregar. Disse-lhe que deixasse passar o duque, que por meu mando vinha a meu serviço, desobedeceu-me, foi-lhe ao caminho, armado... Porém, pelo vosso amor, principalmente, e porque nisso sinto bem quanto vos amo, se o Infante vosso pai como quem errou me quiser mandar pedir perdão, eu me haverei com ele por outra maneira de que sejais contente.
Há homens que são nobres pelas suas virtudes e, algumas vezes, em situações difíceis, pelos seus próprios defeitos. Pedro foi um homem desses. E morreu por isso.
Afonso como Rei anulava a decisão do Conselho se o sogro lhe pedisse perdão. A Rainha a quem, mais tarde, o irmão chamou manto e consolo da nossa família, o irmão que a morte do pai lançara no exílio, Pedro também de nome, escreveu ao pai. Imagino a letra trémula da pobre e jovem soberana a aconselhar o pai, aquele homem de vontade férrea, apesar das aparentes indecisões, para dizer, como quem tivesse errado, que solicitava o perdão ao genro... Pois o marido assim lho permitira e aconselhara! Pedro não podia aceitar. Mesmo que tivesse culpas, e teve algumas, não eram as que lhe imputavam.
Conhecia perfeitamente a razão última de toda a situação: o irmão, o primo, os Braganças. Pensou numa cilada pois era assim, para acatar os sentimentos da filha, obrigado a requerer um perdão para crimes não cometidos. É interessante perceber como funcionava a mente de Pedro. Ele não podia confessar coisa nenhuma porque, negasse ou confessasse mesmo o que não tinha a confessar, a arma utilizada contra ele funcionava sempre como uma lâmina de dois gumes. Ele acreditava na filha mas no sobrinho, depois de tudo, depois de o saber completamente manobrado pelo tio e primo, como poderia voltar a crer na sua palavra? Mas respondeu. Pela filha.
Só que, ao terminar, redigiu, firmemente: ...e isso, senhora, faço eu mais por vos comprazer e fazer satisfação, que por me parecer razão que o assim faça. Claro como água. A prova final. A experiência final. A resposta, essa, adivinhava-a certamente, enquanto, com o coração oprimido, escrevia as derradeiras palavras à filha que tanto amava. Era o último espasmo da fera ferida também. O Rei ficou furioso e arrependeu-se de ter pensado em ceder para propiciar a concessão do perdão. Rasgou a carta, rompeu com a palavra dada e berrou, furioso: - Isto é um fingimento! Não aceito! - Deixou a infeliz Rainha desfeita em lágrimas e saiu porta fora, como se levado por mil diabos».

In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT