quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A Montanha Russa de Deus. Alexandre Honrado. «… no seu suporte. E que assim, de pernas para o ar julgar-se-ia haver, erradamente, duas camas número 96 nesta enfermaria. Falando e escrevendo com sinceridade, não era fundamental que se contasse nada disto»

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O Dodelat-sis
«(…) Pouco depois de Teodoro ter saído do hospital, uma empregada irá lavar a mancha de sangue e esfregar um resto de miolos que ficou por cima da cama do moribundo assassinado. Será essa mesma empregada que irá repor a placa com o número 69 no seu suporte. E que assim, de pernas para o ar julgar-se-ia haver, erradamente, duas camas número 96 nesta enfermaria. Falando e escrevendo com sinceridade, não era fundamental que se contasse nada disto.

Ora viva! Conhece lá o Autor
Oxalá daqui a uns meses esteja a chover a cântaros, não haja mesmo nada para fazer e esta ideia que tiveste, a de ler este livro, compense o estado de ânimo em que tens andado. Para já, só para te incomodar, convém dizer que está um radioso dia de sol eles estão ao ar livre e parecem despreocupados. Morde-te de inveja! Bom, talvez não estejas a perceber... Quem são eles? Mortos, feridos, perseguições, tiros, intrigas, sexo, corrupção, amor, sentimentos! De tudo isto existe, em abundância, nesta história. Mas exige-se desde o início um pouco de decoro. Por isso... O Autor apresenta-se agora, justifica-se já, desculpa-se pelos Narradores que não escolheu, antes se lhe impuseram como pequenas pulgas em cão velho e vadio. Os Narradores que, inevitavelmente, o substituirão por vários EU, equívocos e suspeitos, irritantes, daqui a algumas páginas, idealmente seria no segundo capítulo, não sabemos se o Autor ficará impune se subverter os sistemas, estão acolá, muito calmos.
O Autor aproveita a pausa e define-se, por questões de princípio e comedida elegância. E foge, desde já, com a mesma elegância e sobretudo com muita modéstia, às responsabilidades, e tantas são possíveis de lhe imputarem mais tarde (a começar por ti, Leitor). Assim mesmo, a responsabilidade é, segundo safa atempada do Autor, inteira, dos Narradores. São eles que, ditatorialmente, narram. O Autor, modernista, mais não faz do que melhorar-lhes sintagmas verbais e nominais, apimentando aqui e floreando acolá, dando-lhes estilo, exactamente estilo, aquilo que Georges Buffon definiu como a ordem e o movimento que conferimos aos seus/nossos pensamentos. Isso, obviamente, não te interessa para nada, Leitor. Mas faz falta aos Narradores e sobretudo aos Homens e Mulheres da Lupa (comunidade sinistra que se esconde pelos cantos e lê os livros como tu, Leitor, nunca o farias). Os Narradores não nascem nem ensinados nem dotados de agilidade vocabular à altura das exigências narrativas. Já imaginaste um Narrador que se te dirigisse num estilo... Fostes, viestes? Hoje vi um grupo que estavam?. Pois é, Leitor. Literatura não é jornalismo, fica sabendo.
Para que os Narradores se saiam airosamente, mesmo que mais tarde, por esturpo e narcisismo, editem a sua própria versão da História em formato livro de bolso e assinem, (tudo é possível!), um êxito editorial (qualquer edição que venda três mil e um exemplares é já um best-seller), eles aqui dependem do Autor. Os Autores, injustamente ignorados, são entidades mais omniscientes e mais omnipotentes do que quaisquer Narradores. Pelo menos, antes de conhecerem o Editor. Numa perspectiva de assumida democraticidade textual, o Autor respeita os Narradores. A bem da justiça e da optimização da narrativa, todavia, acha-se o Autor no direito de puni-los sempre que lhe aprouver. Sente-se mesmo no dever de calá-los. De cortar-lhes o pio, mesmo que, os Autores são assumidamente emotivos, isso doa».
In Alexandre Honrado, A Montanha Russa de Deus, Editorial Bizâncio, 2001, ISBN 972-53-0114-5.

Cortesia de E. Bizâncio/JDACT