quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal. António Cândido Franco. «Sou como vós, ó árvores! A sonhar, / desço aos seios da Noite, a ver se encontro / algum veio de luz, onde matar / esta sede infinita em que me abraso! / (..) / Ai, tendes fome e sedes! Assim eu / tenho sede de luz»

Cruzeiro Seixas e jdact

Dou por seguro o seguinte: a peça há-de levar outra demão

Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes
«(…) Falta lá tanta malha, que não me atrevo a considerar as tinturas actuais senão um acto de abertura. Se entretanto eu não regressar do passeio, o que pode muito bem acontecer, alguém tomará em mãos o pincel por mim.

A ponte entre estes dois mundos é quase inexistente; só a reminiscência, a memória residual que toda a sombra tem no fundo de si da luz exterior de que parece ser a última projecção, cria uma ténue linha de passagem entre as ideias e as sombras, o interior e o exterior da caverna. Em Sohravardi em vez de duas realidades antagónicas, há pelo menos três realidades em jogo: as ideias, as imagens e as coisas. A alma não chega directamente do mundo das ideias, do extra-mundo se assim posso dizer, mas do mundo das imagens, que está intimamente referido ao das ideias mas dele se distingue por uma corporeidade subtil. É um plano intermédio, um entre-mundos, por contraponto ao extra-mundo das ideias e ao intra-mundo da matéria, um plano que tanto participa pela encarnação na realidade sensível das coisas como pelo duplo, que nunca abandona o plano subtil das imagens, na realidade luminosa das ideias. Tomo agora o livro de Teixeira de Pascoaes, Duplo Passeio.
Logo no título encontro a ideia de duplo ou de desdobramento, que me puxa à lembrança tanto, até por dentro da obra de Pascoaes, em primeiro lugar essas sombras do livro de 1907, que abro agora e onde deparo ao acaso com estes versos, quarta estrofe do poema A Sombra do Passado: Sou como vós, ó árvores! A sonhar, / desço aos seios da Noite, a ver se encontro / algum veio de luz, onde matar / esta sede infinita em que me abraso! / (..) / Ai, tendes fome e sedes! Assim eu / tenho sede de luz. E depois, ainda ao acaso, estes, no poema Além Mundo: (..) além desta carne contingente, / que nos cobre estes ossos de miséria, / outra existe, mais bela e transcendente, / para onde foge e emigra a nossa alma. Nestes quatro versos deparo com o desdobramento da realidade material tal como o encontro em Platão e nas glosas platónicas que se lhe seguiram; é aquilo que o sujeito chama de outra carne, nem contingente nem miserável, e que por sua vez não anda longe da segunda consciência elaborada por Freud. Uma nota: esta outra carne diz respeito à totalidade do mundo natural, a tudo o que existe em matéria, da pedra ao homem, da bactéria à mulher, da formiga à criança, e não apenas à esfera humana.
O antropomorfismo não tem aqui lugar; seria irrisório ver sob este aspecto o homem separado da natureza. Por isso o sujeito destes versos pode gritar que é árvore. E por isso em poema da mesma época, publicado em Vida Etérea (1906), A Uma Ovelha, o sujeito foi capaz de ver num animal de rebanho um ser faminto dessa relva que enverdece / os outeiros e os vales do Outro Mundo. Essa ovelha mostra que todo o corpo corruptível recebe um sopro alienígena, uma alma incorpórea; qualquer corpo material, do mais ínfimo ao maior, é uma sombra projectada por uma ideia. Tudo na Terra reflecte o seu arqueu ordenador; tudo na Terra se projecta no infinito; tudo na Terra tem uma alma e aspira a entrar em contacto com a parte dela que não encarnou. A anima mundi é terrena e não apenas humana. O tópico do sujeito como árvore, com raízes, leva-me à primeira citação, na qual muito me toca a acção aí referida, sonhar. Dito doutro modo, o sujeito é como uma árvore mas só quando sonha, pois sonhar é fazer da noite um húmus onde se bebe a luz. Se levar adiante o raciocínio obtenho: o dia, sem sonho, traz o corpo material e a noite, com o sonho, traz a alma ou a segunda consciência de que fala Freud. O veio de luz que o ser a sonhar procura é o extra-mundo platónico. Convém perguntar: mas porquê a sonhar? Com certeza porque o sonho faz pate daquele órgão da alma encarnada que a põe em contacto com o lugar de origem». In António Cândido Franco, Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.

Cortesia de Licorne/JDACT