sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho. Carolina Michaelis de Vasconcelos. «… ‘E entom disse Leomites: meu senhor e meu amigo Amaro, grande saudade ora me leixades. … E Vellijdes lhes disse: Ay amigas, nom choredes ante ell, que auerà gram coyta e gram saudade’»

Cortesia de wikipedia e jdact

O que é a Saudade, linguisticamente
«(…) Soedade soìdade suïdade sempre contaram na poesia arcaica por quatro sílabas, correspondentes às do latim solitates, de que saíram, por evoluções fonéticas normais: queda do l intervocálico; redução das outras duas consoantes mediais, de dentais fortes a brandas; redução de i átono a e surdo; finalmente pronúncia de o-e como o-i e redução a u-i que, pela tendência do português a formar ditongos decrescentes se deviam fundir necessariamente num úi. A forma primitiva so-e-dade perdurou na Galiza até o século XV. Podem verificá-lo nos textos bilingues do Cancioneiro Galego-Castelhano, que abrange as poesias líricas da idade de transição do primeiro ao segundo período (1350 a 1450), incluindo as de Macias, o Namorado. Há mesmo poetas de hoje que a empregam, p. ex. Rosalia de Castro, e Curros Enriquez nos Aires de minha terra. A par dela, já se encontra contudo, em compositores do século XIII, a segunda forma so-i-dade segundo as provas contidas nas Cantigas de Santa Maria. A terceira, suidade, é hoje a mais viva na boca do vulgo galiziano, usada também por poetas ilustrados que se esforçam em erguer a linguagem literária os dialectos ancestrais.
Em Portugal tivemos igualmente, após o pré-histórico so-e-dade (de que eu não posso indicar exemplo), o arcaico so-i-dade, documentado nas Cantigas del-rei D. Dinis. O ulterior su-i-dade ficou sendo a forma preferida dos escritores clássicos até 1580, acompanhado do adjectivo suidoso de que, parece, não se fazia uso fora das fronteiras. Preferida. De modo algum exclusiva. Saudade e saudoso primitivamente portuguesas, foram subindo, pouco a pouco, da boca de semi-cultos, às camadas sociais superiores, dos verdadeiramente letrados. Venceram todavia em toda a linha só depois de Alcácer-Quibir, nos sessenta anos em que a união ensinou a convertidos e não-convertidos a distinguir, a amar, e a cultivar com especial carinho tudo quanto era fundamentalmente português, e também a chorar em Babel-Espanha por Zião-Lisboa. Luís de Camões, que pessoalmente teve tanta ocasião de sentir saudades, no Ribatejo, em Ceuta, na Índia, na China, em Moçambique, Luís de Camões empregava ainda, sem diferença de sentido, ora soidade e soidosa, ora saudade e saudoso.
Por isso, por soidade ser usadíssimo até 1580, surpreende, e muito, que saudade, forma evolutiva, alterada em virtude de processos analógicos, se encontre isolada, num códice com prosas do século XIV, anteriores a Ceuta e às empresas marítimas patrocinadas pelo Infante Henrique, para logo desaparecer de novo, não tornando a surgir senão no século XVI. Na segunda metade do século XV, nos textos versificados do Cancioneiro de Resende, é que eu procurei, e continuarei a procurar, as auroras da forma nacional. Seria bom por isso que algum romanista de Lisboa, ou algum experto da Torre do Tombo ou Biblioteca Nacional, examinasse de novo o precioso códice alcobacense n.º 266, que já nos trouxe tanta noção importante acerca da linguagem arcaica, com o intuito de fixar se a letra dele é realmente do século XV; e principalmente, se a fª 116 se lê, na Vida de Santo Amaro, o trecho seguinte: E entom disse Leomites: meu senhor e meu amigo Amaro, grande saudade ora me leixades. E novamente a fª 119: E Vellijdes lhes disse: Ay amigas, nom choredes ante ell, que auerà gram coyta e gram saudade.
Se não houver emenda de segunda mão nesse passo, nem tão pouco erro de leitura ou escrita da parte do editor do texto OttooKlob, em geral muito cuidadoso, e se a letra for realmente do século XIV então teremos de aceitar como provada a existência de saudade, com o significado de hoje, no tempo de Pedro e Inês, de pouco uso embora». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade minha – quanto te veria?”, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.

Cortesia de Guimarães E./JDACT