domingo, 17 de novembro de 2013

Confissões de Uma Freira Pagã. Romance histórico. Kate Horsley. «… baseado na descoberta de um manuscrito do século V que retrata na primeira pessoa a experiência de Gwynneve, uma freira irlandesa colocada entre dois mundos»

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Confissões de uma freira pagã. Declaração
«(…) Trabalho como um insecto debaixo da sua abóbada de lama, transcrevendo escrituras, dado que sou uma das poucas freiras que é instruída. Sou rápida no meu trabalho porque o meu professor, Giannon, o Druida, era um perito na magia das palavras e ensinou-me a não ser superficial nem impaciente. Acabei agora mesmo a transcrição de sciathlúireach (orações de protecção de um dos livros de São Patrício). Faltam só algumas horas para o sino tocar para os cânticos matinais, mas eu não quero dormir. Há certas noites em que eu não durmo profunda e longamente mas, em vez disso, pairo num mundo intermédio, entre pensamentos e imagens selvagens. Às vezes, os mortos falam comigo e fico agitada. Nessas alturas alivia-me escrever. Os pensamentos terríveis resultantes do que eu testemunhei e ouvi encontram algum a paz quando os transformo em marcações sobre o pergaminho. Eu não posso ficar calada perante o que me foi dado ver e observar nem, de facto, seria correcto fazê-lo. É um dever sagrado saber a verdade e contá-la.
A verdade tem um volume muito maior do que o corpo e a alma de uma pessoa. Eu sou pequena, tanto em corpo como em alma, mas tentarei ser como a formiga que carrega muitas vezes o seu próprio peso. Aqueles que lerem estas páginas, tenham misericórdia de mim. Beati immaculati in via (abençoados aqueles de caminho irrepreensível).

Que a cruz de Santa Brígida esteja sob os
meus pés.
Que a manta de Maria me envolva os ombros.
A protecção de Miguel sobre mim, pegando na
minha mão.
No meu coração, a paz do Filho da Graça.
Na minha alma, a protecção de todos os bons
espíritos nesta feroz e linda terra.

A minha túath (tribo composta de um ou mais grupos de familiares ou clãs) era Tarbfhlaith, onde eu nasci da minha mãe, Munrynn, e do meu pai, Clebd. Não posso dizer muito sobre os seus antepassados, porque eles não se destacaram em batalhas, excepto o pai da minha mãe e a irmã dele. Alguns já ouviram falar deles como o Connacht e a Flaev. Ele era um finna (guarda-costas real) do Alto Rei Loaguire, o chefe que recusou o baptismo quando Patrício o ofereceu. Connacht e a sua irmã eram dois guerreiros esguios que morreram durante os cinco anos da fome. Segundo se diz, a minha tia pôs-se à frente do seu irmão para o proteger e caiu, atingida nas pernas. Connacht, aparecendo por atrás dela, recebeu uma machadada na boca que lhe cortou a cabeça na mandíbula. Flaev viveu vários dias enquanto o ódio cruel dos seus inimigos, que tinha entrado nela através da perna ferida, lhe chegou ao coração e a sufocou. Os feitos heróicos de Connacht e Flaev foram lembrados nas canções que os nossos homens cantavam nos festins enquanto batiam na mesa com os punhos.
Eu adorava ver os homens baterem com os punhos e fazerem um forte rugido com as suas vozes. Eu adorava quando as mulheres, nestes festins, rasgavam as suas vestes e mostravam os seus seios, num hino ao sacrifício e à luxúria. Durante muitos anos, apoiei os cotovelos nas mesas dos festins para ouvir cantar os nomes do meu avô e da minha tia. Mas as letras das canções eram repetidas tantas vezes que se tornaram comuns como a palha. Depois de ter viajado por outros lugares, fiquei a saber o quão pequena era a minha túath. O salão do chefe tinha apenas o dobro do comprimento das numerosas cabanas que pareciam derramar-se por uma clareira de lama, ao lado do lago chamado Oille. Eu não conseguia ser um membro tão leal e dedicado à túath de Tarbfhlaith quanto os outros, que se contentavam em cantar uma só canção durante toda a vida e em falar frequentemente sobre porcos e aveia. Desde criança, eu afastei-me muito da minha túath, e até me tornei numa fortúath (estrangeira)». In Kate Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.

Cortesia Ésquilo/JDACT