quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Luandino Vieira. O Mineiro Angolano da Memória. Adriana Mello Guimarães. «Como são dolorosas as recordações! Oh, quem me dera outra vez mergulhar o corpo em água suja e ter a alma limpa como nos tempos em que ele, eu, O Mimi, O Fernando Silva, o João Maluco, o Margaret e tantos outros éramos os reis da Grande Floresta»

Cortesia de wikipedia

«(…) Era a época do Estado Novo, regime autoritário. O que significava Angola no contexto político-económico do Estado Novo? O chefe do governo português, António de Oliveira Salazar, atribuiu aos territórios africanos uma função geográfica estratégica de exploração e de poder. José Freire Antunes resume assim essa época:

Sem surpresa, a África inspiradora de orgulhosa retórica era, nos anos 40 e 50, uma imagem reflexa da matriz ibérica: o Portugal pré-industrial, com um rendimento per capita de 250 dólares (o mais baixo da Europa), uma taxa de analfabetismo de 40%, o mais elevado índice de mortalidade infantil (…) Angola e Moçambique ficaram longamente condenados a baldios do Portugal Europeu.

E o que dizer da ambiência cultural do colono? Um outro escritor, António Cardoso, que compartilhou sua infância com Luandino e foi seu colega, traça um quadro da vida escolar que significa, em poucas palavras, uma formação opressiva: O liceu era o estabelecimento de ensino mais forte, onde havia o branco de segunda, um ou outro preto, alguns mestiços (…) Professores, angolanos, nunca tivemos nenhum. Parece-nos provável que, desde a infância, a formação escolar tenha gerado em Luandino o sentimento do oprimido que liga inexoravelmente o indivíduo ao povo da terra, o que explicaria a sua adopção, por livre escolha, da cidadania angolana. Ou seja, ao concentrarmo-nos na infância de Luandino, distinguimos uma criança que se torna adulta à força de percorrer um caminho semeado de contradições entre o colonizador e o colonizado; entre o branco e o negro; entre o rico e o pobre. O que o move nesse percurso senão o sentimento de colonizado, de cópia, de postiço, de híbrido? O que o torna criador senão o pensamento dessas contradições e desse sentimento?

Vivência da dor
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, abranda as rochas rígidas, torna água todo o fogo telúrico profundo e reduz, sem que, entanto, a desintegre, à condição de uma planície alegre, a aspereza orográfica do mundo! Provo desta maneira ao mundo odiento pelas razões do sentimento, sem os métodos da abstrusa ciência fria e os trovões gritadores da dialéctica, que a mais alta expressão da dor estética consiste essencialmente na alegria. In Augusto dos Anjos, Monólogo de uma Sombra
A cidade e a infância (contos, 1957), primeiro livro publicado por Luandino, remete o leitor para a década dos anos quarenta, altura do início da formação da identidade nacional angolana. A força e o poder são retratados por dentro, através de imagens do quotidiano. Neste livro, Luandino inicia um percurso de luta contra a injustiça e começa a criar a sua própria linguagem.
O livro chama a atenção das autoridades: afora três exemplares, as autoridades policiais apreenderam toda a edição, inclusive os originais, a composição e as provas. O livro é composto por dez narrativas breves, que descrevem os bairros pobres de Luanda, onde habitam meninos negros, brancos e mestiços. Ouvimos estas vozes como se estivéssemos a escutar alguém a ler em voz alta, e descobrimos dois mundos, um branco e um negro, que vivem na mesma infância. Logo no primeiro conto, Encontro de acaso, somos convidados a entrar na Grande Floresta acompanhados por miúdos de oito anos, de corpos escuros, de brancos que brincavam todo o dia nas areias vermelhas, que saboreavam iguarias como quicuerra, peixe frito e açúcar preto com jinguba; e que queriam conquistar o Kinaxixi, bairro operário contíguo ao Makulusu, que era um bairro novo que se ia construindo com o comércio do café. A narrativa recria a desigualdade do sistema colonial. Porém, acima de tudo, introduz a dor como elemento primordial da criação estética:

Como são dolorosas as recordações! Oh, quem me dera outra vez mergulhar o corpo em água suja e ter a alma limpa como nos tempos em que ele, eu, O Mimi, O Fernando Silva, o João Maluco, o Margaret e tantos outros éramos os reis da Grande Floresta.

O próprio narrador nos conduz a este entendimento, ao confidenciar que tudo se modificou e só a ferida feita pela memória persiste ainda. Neste conto estão presentes os valores permanentes internos da consciência e os imperativos históricos e externos da mudança e da transformação, tanto do ser humano como de um povo. Assim, numa sequência de cenas como cinematográficas, a narrativa suscita emoções que envolvem problemas de hoje e de sempre da existência humana». In Adriana Mello Guimarães, Luandino Vieira, O Mineiro Angolano da Memória, Artigos e Ensaios, Revista Crioula, nº 3, 2008.

A amizade de Adriana
Cortesia de Revista Crioula/JDACT