domingo, 10 de novembro de 2013

Centenário de Nascimento. Até Amanhã, Camaradas. Manuel Tiago. «E eles até mesmo nos ajudam a sentir que muito existe ainda sem nome, à espera de coragem, pois de coragem é, em grande parte, feita a capacidade de entender, de sentir a fundo, e de acertar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Súbitas rajadas de vento bufaram do Sul. Com estardalhaço, uma chapa de zinco, vinda não se sabe donde, voou de um lado da estrada, deu quatro pinotes grotescos e foi engarrafar-se, silenciosa e miserável, na valeta do outro lado. Logo uma bátega varreu a estrada. Os homens, já encharcados pelos chuviscos que caíam desde o alvorecer, procuraram abrigo junto aos troncos esbeltos dos pinheiros. Só dois rapazitos se deixaram ficar a britar pedra, rindo dos homens que fugiam à chuva. Encolhidos e colados às árvores, os homens gritaram que se abrigassem. Vendo-se observados, os rapazitos mais riram ainda e um deles, sempre britando pedra, começou a esticar o pescoço alto e esgalgado, pondo os olhos em alvo e lambendo a água que lhe escorria cara abaixo. O outro, piscando os olhos, olhava o companheiro, olhava os homens e parecia dizer: somos engraçados, não somos? - Vejam aqueles diabos, disse um velho, procurando enrolar-se num casaco tão pequeno que dir-se-ia de criança. O homenzinho magro a quem se dirigia encolheu os ombros. - Já não temos outro dia, disse numa voz branda e cansada.
Como para lhe dar razão, o vento soprou mais forte, o ar escureceu, o céu pegou-se à terra, os fios de água continuaram a engrossar. Um a um, os homens largaram então os fracos abrigos. Alguns em passo forçado, outros em corridas curtas, outros com seu passo natural, como achando indigno apressar-se por coisa tão pouca, dirigiram-se a uma casa isolada que a uma centena de metros parecia agachar-se debaixo da chuva. Havia ali uma taberna e, se nem todos estavam dispostos a beber, ao menos sempre teriam um tecto em cima. Vendo os companheiros afastarem-se, os dois garotos atiraram as marretas ao chão. O do pescoço alto partiu como uma flecha, espadeirando as poças de água com os pés nus e agitando os braços em gestos largos e desengonçados, a querer possivelmente significar que era um grande nadador. O outro seguiu, sacudido de riso. Chegaram antes de todos à taberna, mas o engraçado, incapaz de ali esperar, veio para a chuva, chamando os homens com os braços e reivindicando assim a iniciativa e a descoberta de tão magnífico abrigo. Foram-se juntando no pequeno e escuro compartimento. Amontoados à porta, olhavam para fora a insinuar ao taberneiro que estariam ali só um instante a abrigar-se da chuva. As ocasiões de negócio eram porém raras e o taberneiro, apressado, pôs-se a lavar os copos já lavados, olhando os homens a pedir desculpa da demora em os servir. Seja pela vergonha de negar tão claro convite, seja porque lhes parecesse não poderem ali ficar todos sem gastar um tostão, seja pela força do pecado, três homens, com ar solene, chegaram-se para beber. Então todos os outros se instalaram mais à vontade, sentando-se uns à roda da mesa, fugindo outros do vão da porta, onde a chuva martelava trazida pelo vento.
 - Já, não temos outro dia, repetiu o homenzinho magro. - Era bem precisa, era bem precisa disse o velho, que não conseguira ainda, nem conseguiria nunca, ajeitar pelos ombros o minúsculo casaquinho. Todos aqueles homens eram mais camponeses que operários, alguns tinham mesmo a sua leira de terra, e, como a estiagem fora grande, sentiam-se tentados a perdoar a molha e a tarde de trabalho perdida. Silenciosos, repassados, fitavam no rectângulo de claridade da porta a cortina de água que quase vedava à vista o outro lado da estrada e apuravam o ouvido ao ruído surdo e amplo perdendo-se na profundidade do pinhal e acusando o peso da bátega. Até os garotos estavam silenciosos, e o engraçado, com um ar triste que se julgaria impossível naquele rosto minutos antes, fazia esforços para reter as tremuras de frio dos membros arroxeados. Num momento em que a chuva caía mais forte, uma sombra passou rápida diante da porta e, antes de alguém ter ido ver do que se tratava, a sombra voltou a aparecer e um homem entrou. Vinha curvado para a frente, abanando os braços e a cabeça para fazer escorrer a água das mangas do casaco e do boné. Quando julgou completada a operação, endireitou-se e, dando os bons-dias, mostrou um rosto largo, anguloso, de pele branca e de expressão severa, onde os olhos se destacavam pela sua fixidez. Um dos garotos, reparando nas calças metidas por dentro das meias, chegou à porta, espreitou para fora, disse qualquer coisa a um dos homens e este dirigiu-se ao desconhecido. - Meta a máquina dentro. Há muito lugar.
O desconhecido pareceu não ouvir. Limpava a cara e o pescoço com um lenço. - Algum dos senhores sabe dizer-me o caminho para o Vale da Égua? - perguntou. Os homens entreolharam-se. Alguns mostraram um sorriso mal disfarçado. - Para onde? - perguntou de um canto uma voz. - Vale da Égua. Fez-se um breve silêncio e os homens voltaram a olhar-se. - Ná, isso não é para aqui, disse outra voz do lado da mesa. - Como disse? - Vale da Égua. Com certeza estava enganado, informou o velho do casaquinho. Nascera ali no sítio e ali vivera sempre. Nunca ouvira falar. Decerto se enganava. O velho falava e alguns sorriam. - Esta não é a estrada para V...? - perguntou o desconhecido. - É, sim, respondeu um dos homens. - V... é, já adiante. Se não estivesse tanta chuva, viam-se daqui as casas. O desconhecido chegou à porta, olhou a estrada, tirou e torceu o boné e voltou para dentro, batendo violentamente com ele numa das mãos e mostrando o cabelo empastado na testa. - Então nenhum dos senhores sabe? - Caminho para onde?, perguntou lá do fundo o taberneiro, que ouvira tudo muito bem, mas entendia dever chamar a atenção do desconhecido para a casa onde se encontrava. - Vale da Égua, disse um dos rapazitos. O taberneiro estendeu o beiço inferior, o que tanto podia mostrar não conhecer tal sítio como descontentamento porque o forasteiro se não decidia afazer despesa. - Bom, obrigado!, disse o desconhecido. E ajeitando o boné, puxando para cima a gola do casaco, chegou-se à porta, olhou ainda o céu e fez-se de novo à chuva». In Manuel Tiago, Editorial Avante!, Lisboa, 1989, 2005, ISBN 972-550-212-4.

Cortesia de Avante!/JDACT