segunda-feira, 21 de abril de 2014

Ensaio sobre o Absurdo. O Mito de Sísifo. Albert Camus. «… a realidade do “Um” (seja lá o que ele for), caímos na ridícula contradição de um espírito que afirma a unidade total e, com a própria afirmação, prova a sua diferença e a diversidade que pretendia resolver. Basta esse novo círculo vicioso para sufocar as nossas esperanças (percebem A. e P.?)»

Cortesia de wikipedia

Os muros absurdos
(…) Ainda uma vez, tudo isso já foi dito e redito. Limito-me a fazer aqui uma classificação rápida e a indicar esses temas evidentes. Eles circulam através de todas as literaturas e todas as filosofias. A conversa de todos os dias se nutre deles. Não se trata de reinventá-los. Mas é preciso certificar-se dessas evidências para poder se interrogar, em seguida, sobre a questão primordial. O que me interessa, faço questão de repetir, não são tanto as descobertas absurdas. São suas consequências. Se nos certificarmos desses factos, o que será preciso concluir, até onde ir para deixar de pesquisar? Será preciso morrer voluntariamente ou, apesar de tudo, esperar? É necessário, antes, fazer o mesmo recenseamento rápido no plano da inteligência. O primeiro procedimento do espírito é distinguir o que é verdadeiro do que é falso. No entanto, desde que o pensamento reflecte sobre ele mesmo o que descobre é, inicialmente, uma contradição. É inútil esforçar-se para ser convincente a esse respeito. Durante séculos ninguém tratou o caso com uma demonstração mais clara e mais elegante que a de Aristóteles: A consequência frequentemente ridicularizada dessas opiniões é que elas se destroem por si mesmas. Porque, afirmando que tudo é verdadeiro, afirmamos a verdade da afirmação oposta e, consequentemente, a falsidade da nossa própria tese (pois a afirmação oposta não admite que ela possa ser verdadeira). E, se dizemos que tudo é falso, também esta afirmação se torna falsa. Se declaramos que só é falsa a afirmação oposta à nossa, nos vemos não obstante forçados a admitir um número infinito de julgamentos verdadeiros ou falsos. Porquanto, quem emite uma afirmação verdadeira declara ao mesmo tempo que ela é verdadeira, e assim por diante até o infinito.
Esse círculo vicioso é só o primeiro de uma série em que o espírito que se inclina sobre si mesmo se perde num torvelinho vertiginoso. A própria simplicidade desses paradoxos leva a que sejam irredutíveis. Sejam quais forem os trocadilhos e as acrobacias da lógica, compreender é, antes de tudo, unificar. O desejo profundo do próprio espírito em seus procedimentos mais evoluídos vai ao encontro da sensação inconsciente do homem diante do universo: ele exige familiaridade, tem fome de clareza. Para um homem, compreender o mundo é reduzi-lo ao humano, marcá-lo com o seu selo. O universo do gato não é o universo do formigueiro. O truísmo de que todo pensamento é antropomórfico não tem outro sentido. Assim também o espírito que procura compreender a realidade só se pode considerar satisfeito se a reduz em termos de pensamento. Se o homem reconhecesse que também o universo pode amar e sofrer, ele estaria reconciliado. Se o pensamento descobrisse nos espelhos cambiantes fenómenos, relações eternas que pudessem resumi-los e se resumirem elas próprias num princípio único, se poderia falar de uma felicidade do espírito de que o mito dos bem-aventurados seria apenas um ridículo arremedo. Essa nostalgia da unidade; esse apetite de absoluto ilustra o movimento essencial do drama humano. Mas que essa nostalgia seja um facto não significa que deva ser imediatamente apaziguada. Porque, se acaso transpondo o abismo que separa o desejo da conquista, afirmamos com Parménides a realidade do Um (seja lá o que ele for), caímos na ridícula contradição de um espírito que afirma a unidade total e com a própria afirmação prova a sua diferença e a diversidade que pretendia resolver. Basta esse novo círculo vicioso para sufocar as nossas esperanças». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.

Cortesia de LBrasil/JDACT