terça-feira, 22 de abril de 2014

O Amor e o Ocidente. Denis de Rougemont. «À medida que a cavalaria, mesmo sob a sua forma profanada de ‘savoir-vivre’, os usos que deve observar quem desejar ser um ‘gentleman’, perder as suas últimas virtudes, a paixão ‘contida’ no mito primitivo propagar-se-á na vida quotidiana»

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O Mito de Tristão
«(…) Muitos são os traços da lenda de Tristão que assinalam um mito. Em primeiro lugar, o facto de o autor, admitindo que o teve, e um só, nos ser totalmente desconhecido. As cinco versões originais que nos restam são manipulações artísticas de um arquétipo de que não pudemos encontrar o menor rasto. Um outro aspecto mítico da lenda de Tristão é o elemento sagrado que ela utiliza. O progresso da acção e os efeitos que ela devia exercer sobre o ouvinte dependem, em certa medida (que teremos de definir), de um conjunto de regras e de cerimónias que é afinal o da cavalaria medieval. Ora as ordens de cavalaria foram muitas vezes chamadas religiões. Chastellain, cronista da Borgonha, denomina assim a ordem do Velo de Oiro (é o último a fazê-lo) e fala dela como de um mistério sagrado, num século em que a cavalaria já não era, no entanto, mais que uma sobrevivência. Finalmente, a própria natureza da obscuridade que descobrimos na lenda denota o seu parentesco profundo com o mito. A obscuridade do mito em geral não reside na sua forma de expressão. Por um lado, reside no mistério da sua origem, por outro, na importância vital dos factos que o mito simboliza. Se esses factos não fossem obscuros, ou se não houvesse algum interesse em obscurecer a sua origem e o seu alcance para os subtrair à crítica, não haveria necessidade de mito. Podíamo-nos contentar com uma lei, um tratado de moral ou mesmo uma historieta que desempenhasse o papel de mnemónica. Não há mito enquanto for lícito manter-se dentro das evidências e exprimi-las duma maneira manifesta ou directa. Pelo contrário, o mito aparece logo que seja perigoso ou impossível confessar claramente um certo número de factos, sociais ou religiosos, ou de relações afectivas, que no entanto se deseja conservar ou que é impossível destruir. Deixamos de ter necessidade de mitos, por exemplo, para exprimir as verdades da ciência: consideramo-las, com efeito, de uma maneira profana e têm portanto tudo a ganhar com a crítica individual. Mas temos necessidade de um mito para exprimir o facto obscuro e inconfessável de que a paixão está ligada à morte e implica a destruição para aqueles que a ela se abandonem com todas as suas forças. É que nós queremos salvar essa paixão e queremos bem a essa infelicidade, enquanto as nossas morais oficiais e a nossa razão as condenam. A obscuridade do mito coloca-nos, portanto, em estado de acolher o seu conteúdo disfarçado e de gozar dele pela imaginação, sem todavia tomarmos dele uma consciência bastante clara para que a contradição ressalte. Assim se encontram postas ao abrigo da crítica certas realidades humanas que sentimos ou pressentimos como fundamentais. O mito exprime essas realidades, na medida em que o nosso instinto o exige, mas vela-as também na medida em que a luz e a razão as ameaçariam.
De origem desconhecida ou mal conhecida, de carácter primitivamente sagrado, velando o segredo que exprime, possuiria o Romance mítico de Tristão no mesmo grau as qualidades coercivas de um verdadeiro mito? Esta pergunta não pode ser evitada. Ela conduz ao cerne do problema e da sua actualidade. Precisemos que as regras cavalheirescas, que no século XIII desempenhavam realmente um papel de pressão absoluta, só intervêm no romance a título de obstáculo mítico e de figuras rituais de retórica. Sem elas a fábula não encontraria pretextos para os seus ressaltos e sobretudo não teria podido impor-se sem contestação aos ouvintes. Somos obrigados a ver que essas cerimónias sociais são meios de fazer aceitar um conteúdo anti-social, que é a paixão. A palavra conteúdo adquire aqui toda a sua força: a paixão de Tristão e de Isolda é literalmente contida pelas regras da cavalaria. Só com esta condição ela se poderá exprimir na semi-claridade do mito. Porque, enquanto paixão que quer a Noite e que triunfa numa Morte transfiguradora, ela representa para toda a sociedade uma ameaça violentamente intolerável. É preciso portanto que os grupos constituídos sejam capazes de lhe opor uma estrutura fortemente elaborada para que ela encontre ocasião de se exteriorizar sem causar os piores estragos.
Se, posteriormente, o laço social vier a enfraquecer ou se o grupo for dissociado, o mito deixará de o ser num sentido estrito. Mas o que tiver perdido em força coerciva e em meios de se comunicar sob uma forma velada e admissível, irá recuperá-lo em influência subterrânea e em violência anarquizante. À medida que a cavalaria, mesmo sob a sua forma profanada de savoir-vivre, os usos que deve observar quem desejar ser um gentleman, perder as suas últimas virtudes, a paixão contida no mito primitivo propagar-se-á na vida quotidiana, invadirá o subconsciente, atrairá novas coacções, inventá-las-á se necessário... Pois veremos que não é só a natureza da sociedade, mas o próprio ardor da paixão sombria, que exige uma confissão mascarada.
O mito, no sentido estrito do termo, constituiu-se no século XII, ou seja, num período em que as elites faziam um vasto esforço no sentido de uma ordenação social e moral. Tratava-se de conter, precisamente, os impulsos do instinto destruidor: porque a religião, atacando-o, o exasperava. Os cronistas, os sermões e as sátiras desse século revelam-nos que ele conheceu uma primeira crise do casamento, que provocava uma viva reacção. O êxito do Romance de Tristão foi portanto o de ordenar a paixão num quadro em que pôde exprimir-se em satisfações simbólicas. Assim a Igreja havia compreendido o paganismo nos seus ritos». In Denis de Rougemont. L’Amour et l’Occident, Librarie Plon, 1938, O Amor e o Ocidente, Vega, Lisboa, 1956.

Cortesia de Vega/JDACT