sábado, 5 de abril de 2014

Hegel. A Justificação da Filosofia. Manuel Carmo Ferreira. «… ainda do período de Berna, ou o ‘Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão’, dos primeiros tempos de Francoforte e, muito mais próximo, o ‘Fragmento de sistema de 1800’, onde estão reunidos os temas capitais da reflexão…»

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A Decisão pela Filosofia
Natureza do impulso para a Ciência
«A visão retrospectiva é introduzida por um paradoxo:

Na minha formação científica, que começou pelas necessidades mais subordinadas dos homens, tinha de ser impelido para a Ciência.

O trânsito do estádio reflexivo anterior para a Filosofia, como sistema, devia processar-se em obediência a uma pressão interna do próprio desenvolvimento científico, como resposta a dificuldades e lacunas que nessa formação se lhe depararam, pois essa fase agora posta em causa não corresponde a uma posição pré-filosófica, mas já do âmbito reflexivo. Esta deficiente iniciação ao saber científico, o contexto o mostra, tem a ver com a necessidade superior que, através dela, não alcança nem consegue justificar. É assim indicada uma insuficiência ao nível dos fundamentos do ponto de partida da reflexão. Que essa passagem, tornada necessária, de um momento de preparação para uma instalação plena no plano científico, assume a forma de uma contestação radical e veemente do modo kantiano de estabelecer o estatuto da cientificidade do saber filosófico, demonstrar-se-á subsequentemente. De forma mais directa, é-nos dito que o ponto de partida para a Filosofia foi uma reflexão sobre as necessidades mais subordinadas dos homens. O progresso para a Ciência surge, deste modo, como a relativização de um pensar ocupado privilegiadamente com as esferas religiosa e política, como subordinação destas à necessidade superior, hegemonizante, à Ciência. Recorrendo Hegel ao conceito de necessidade, carência, um conceito típico da Aufklärung, sublinha por essa via a dimensão prática determinante do movimento. O motor da reflexão reside na ordem prática; é uma motivação ética que preside à instauração do pensar e que desencadeia o processo de maturação científica. A Ciência como exigência superior é a forma suprema da práxis, é o sistema, a consecução da satisfação plena; a necessidade em que todas as necessidades se resolvem e que resolve todas as necessidades é a razão. Um outro elemento centralíssimo nesta análise descritiva é a insistência renovada, e os termos em que a formula, numa mudança imperativa:

O ideal da juventude tinha de transformar-se, ao mesmo tempo, na forma da reflexão, num sistema.

A conversão à Filosofia está intimamente articulada com a crise do ideal da juventude: provocando essa crise, reflectindo-a ou sendo apenas mera resultante? Imediatamente, nada permite precisar melhor os contornos de tal crise nem avançar na compreensão da necessidade que lhe é inerente. Há, porém, no condensado da expressão, uma leitura equívoca a evitar desde já: a transformação do ideal da juventude na forma da reflexão não pode significar a permanência desse ideal com um novo conteúdo, como se o sistema fosse o ideal da maturidade. Não estamos perante uma simples alteração do objectivo visado, mantendo-se idêntica a atitude, mas de uma nova posição da dinâmica existencial e do próprio pensar, não mais passível de ser traduzida em termos de ideal, dinâmica essa que ganha a consistência de uma tarefa, a realidade de um trabalho, a verdadeira dignidade do científico.
Levanta-se naturalmente a questão de saber se essa transformação é algo fundamentalmente ainda em curso no momento em que se explicita a tomada de consciência da viragem ou se o presente é a conclusão de um processo em grande parte já percorrido e de que se poderiam apontar, como marcos mais evidentes, remotamente os assim designados Materiais para uma Filosofia do Espírito Subjectivo, como pretende Kimmerle, ainda do período de Berna, ou o Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão, dos primeiros tempos de Francoforte e, muito mais próximo, o Fragmento de sistema de 1800, onde estão reunidos os temas capitais da reflexão posterior e os pressupostos estruturais do método.
A carta refere ainda a vontade de retomar trabalhos principiados e estudos, cuja identificação desenharia melhor os contornos das ocupações intelectuais de Hegel, no momento da passagem para Iena. De facto, vemo-lo terminar a estada em Francoforte com uma nova redacção da introdução ao escrito sobre a Positividade da Religião Cristã e um estudo crítico da geometria de Euclides; nos dois primeiros anos de Iena, retoma, em novas versões, os trabalhos sobre a Constituição da Alemanha, o que representa da sua parte o reconhecimento de que o material até então produzido era susceptível de vir a integrar-se em novas sínteses. Sobre os estudos a que a carta também se refere, não temos outro meio de estabelecer com maior precisão o seu conteúdo senão atender ao seu resultado: o escrito sobre a Diferença dos Sistemas da Filosofia de Fichte e de Schelling, concluído em Julho de 1801, trabalho que não se improvisa e que representa a primeira realização conseguida do programa sistemático anunciado, cuja introdução temática pode bem ser lida como um comentário dos pontos essenciais enunciados na carta em análise. Uma última informação interessante de relevar é a curiosidade manifestada pelo catolicismo:

[...] preferiria uma cidade católica a uma protestante; quero ver de perto, por uma vez, essa religião.

Associar-se-á à consciência da transformação entretanto operada uma atitude especialmente crítica em face do luteranismo, manifestação religiosa do espírito do Norte, incarnado também no sistema kantiano e no idealismo seu herdeiro? A questão ficará em aberto na ausência de outros elementos». In Manuel Carmo Ferreira, Hegel, E A Justificação da Filosofia (Iena, 1801-1807), Estudos Gerais, Série Universitária, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, ISBN 972-27-0516-4.

Cortesia INCM/JDACT