terça-feira, 29 de abril de 2014

Lionor. Lionor. A Paixão da Memória. Seomara Veiga Ferreira. «A velhice instalou-se comigo em Tordesilhas nestes últimos dois anos. Tenho trinta e seis anos e estou velha, desiludida. Sei que ainda não morri porque meu estúpido genro, tão escravo de protocolos, mesquinho e vingativo, apesar de tudo e do ódio que me tem…»

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«(…) Nessa noite, que tantas as vezes observei da janela da casa onde nasci, nas agrestes montanhas do Norte, na de meus tios que me criaram, eu colocava como num desenho, em tons negros ou cinzentos, a dor da velhice, os seus terrores, como eles existiam sob as copas e os troncos, onde se acoitavam malfeitores na loucura da sua violência fratricida. A noite amedrontou-me sempre, é certo, com a sua face obscura, secreta, implacável. E à treva associei o envelhecimento, a tristeza, a desilusão, a ameaça pertinente e invencível da dissolução de outros rostos, como a já vira devastar os de mulheres e homens que me rodearam na meninice e comigo conviveram. Vi-a durante os últimos anos destruir o rosto de Fernando, a sua face pura, belíssima, o seu nariz direito, fino, que no fim traduzia a transparência das asas de certos insectos, os seus olhos cor de mel, quase fulvos, risonhos, onde crepitava, numa alegria de embriaguez controlada, o ouro e o Sol, o seu poderoso corpo esbelto, forte, que continha, como um vinho precioso, a força do desejo e a ilusão do prazer eterno, as grandes forças da terra e da luz que, unidas, são a origem da vida e o nosso sonho de eternidade que se repete sempre em cada ser e em cada geração. Mas a ideia da velhice está muito longe de nós, em certos momentos da nossa existência, mesmo quando observamos o seu insidioso caminho na face dos que sofrem a sua transmutação. A velhice. Nunca a pensei instalada no frágil alicerce de meu corpo, nos meus tempos áureos dos Paços, com o amor obcecado e confuso de Fernando, o amor cego, infantil, ingénuo, de quem não sabe amar...
Quando a senti pela primeira vez? Quando? Em Santarém, em Coimbra, em Elvas? Não. Foi em Lisboa, naquela desgraçada noite em que o Mal começou a vingar-se de mim para não mais me larga; o Mal, a traição, a cobardia dos homens. Aquela terrível noite nos Paços, que se seguiu à morte do infeliz João Fernandes. Foi nessa noite, porque, apesar de a idade não o justificar, percebi que começara a perder a partida. Apenas fazia parte, e a parte menor, da intriga urdida por todos, meu melífluo cunhado, ambicioso, cobarde e velhaco, sequioso do poder, esfaimado de honras onde poderia esquecer a sua bastardia que nunca perdoou; os ingleses, que já nessa altura, secretamente, o apoiavam e, tenho a certeza, lhe ordenaram a morte do conde de Andeiro, de cujos serviços já não necessitavam, porque a rainha viúva de Portugal deixara de centrar na sua pessoa o interesse político que antes detinha e preferiam apoiar o pretendente espúrio que vivia em Portugal (já que o outro estava detido em Castela, meu cunhado, filho de D. Inês) e que os homens de negócios de Lisboa desejavam, manobrando a arraia-miúda a seu bel-prazer, como se a canalha das ruas tivesse opinião política fosse sobre o que fosse. Antes o bastardo que a fraqueza de uma mulher que permitisse a Castela tomar o Reino pela mão da jovem D. Beatriz, minha filha. Só que não era assim. O tratado fora muito claro e Fernando defendeu, como pôde, a independência do Reino. John of Gaunt, que teve fundas pretensões ao trono de Castela, ainda não as perdera e impediria por todos os meios que Castela engolisse Portugal antes de ele próprio ser rei, por questões estratégicas e políticas, evidentemente, mesmo que por direito adquirido no casamento. Apenas por isso, apoiou o discreto e aparentemente submisso Mestre de Avis que aceitaria qualquer apoio, viesse de onde viesse, para ser rei.
A velhice instalou-se comigo em Tordesilhas nestes últimos dois anos. Tenho trinta e seis anos e estou velha, desiludida. Sei que ainda não morri porque meu estúpido genro, tão escravo de protocolos, mesquinho e vingativo, apesar de tudo e do ódio que me tem, não se atreve a dar-me o golpe final, bem ao estilo da família dele que mata os irmãos à punhalada, por causa de minha filha, Beatriz. Mas sabeis que até ela me odeia e me abandonou. É apenas uma criança que ele domina.
Ah, frei Juan! Esse olhar azul! Não esqueço a vossa ascendência borgonhesa. Tendes uns olhos compreensivos, leais, carinhosos. O Cambridge tinha-os menos profundos mas sempre frios e perscrutadores. O Cambridge... Voltemos então à nossa história, meu amigo. Àquilo por que vos pedi para virdes estar comigo. Quando olho por esta janela já nem sequer fico triste. E a partir de ontem muito menos. Conheceis a lenda da Pedra-que-chora? Contaram-ma quando aqui entrei. A pedra existe, aqui, no velho pátio mourisco do edifício. Dizem, não sei se é verdade, que ela se humedece quando está para morrer alguém coroado… E a pedra dos desígnios, uma espécie de pedra do destino. Pois bem, ela ontem chorou. A água, confessou-me a jovem monja oriunda de Toledo, de uma velha família ainda aparentada com a minha, começou a correr, em fio. Um fio transparente e brilhante como prata líquida. Minutos depois, outro fio de água, paralelo, deslizou até ao chão». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT