segunda-feira, 24 de agosto de 2015

A Caminhada. Richard P. Evans. «Não gostei de ouvir aquilo. Tenho sorte por a minha mãe ter morrido?! A tua mãe teria ficado ao pé de ti, se tivesse podido, respondeu, entre soluços. Já a minha preferiu abandonar-me»

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«(…) O Verão ia chegando ao fim e McKale estava sentada, sozinha, a uma mesa de jogo, transportada para o jardim da frente. Vendia Kool-Ade que tinha já preparado num jarro. Tinha vestida uma saia curta, que lhe ficava acima dos joelhos, e calçava umas botas de cowboy cor-de-rosa. Perguntei-lhe se podia ajudá-la e ela olhou para mim por instantes, acabando por responder que não. Então, subi ao meu quarto a correr e desenhei um cartaz grande com a inscrição: KoldKool-Ade. Só 70 cêntimos (O K em Kold pareceu-me um toque de originalidade. Feito isto, voltei para baixo e mostrei-lhe a minha criação. Ela gostou do cartaz o suficiente para me deixar sentar-me ao seu lado. Deve ter sido para fisgar a miúda do filme, que me meti na publicidade. Conversámos e bebemos vários copos de plástico do seu elixir de cereja-negra, que ela ainda assim me fez pagar. Era linda, com os seus traços perfeitos: tinha o cabelo comprido, da cor do café, sardas e uns olhos cor de amêndoa que nem um publicitário conseguiria melhorar. Acabámos por passar muito tempo juntos naquele Verão... Na verdade, passámos muito tempo juntos em todos os verões que se seguiram àquele.
McKale não tinha irmãos e também ela tinha acabado de passar por um período difícil. Os seus pais tinham-se divorciado cerca de dois meses antes da nossa chegada e, segundo me contou, não se tratara de um divórcio comum, precedido por grandes gritarias e coisas partidas. A sua mãe limitara-se a abandonar o lar, deixando-a sozinha com Sam, o pai. A sua cabeça andava sempre às voltas com aquilo, tentando perceber o que tinha corrido mal, embora parecesse, por vezes, encalhada, como quando um computador bloqueia e a pessoa fica ali a olhar para a ampulheta à espera que aconteça alguma coisa. É uma pena os seres humanos não virem equipados com o botão de reiniciar.
Os nossos cacos encaixavam-se uns nos outros e partilhávamos os nossos segredos mais bem guardados, as nossas inseguranças, os nossos medos e, por vezes, o que nos ia no coração. No ano em que fiz dez anos, comecei a chamá-la de Mickey e o cognome agradou-lhe. Foi no mesmo ano em que construímos uma casa numa árvore do jardim das traseiras da sua casa. Passámos muito tempo nessa cabana, jogando jogos de tabuleiro e até lá dormimos algumas noites. No dia em que ela fez onze anos de idade, encontrei-a sentada a um canto da cabana, chorando histericamente. Como é que ela foi capaz de me abandonar?, perguntou, quando conseguiu falar. Como é que uma mãe é capaz de fazer uma coisa destas?!, atirou, limpando os olhos, furiosa.
Não soube responder-lhe, pois fizera a mesma pergunta a mim mesmo. Tens sorte por a tua mãe ter morrido, disse ela. Não gostei de ouvir aquilo. Tenho sorte por a minha mãe ter morrido?! A tua mãe teria ficado ao pé de ti, se tivesse podido, respondeu, entre soluços. Já a minha preferiu abandonar-me. Anda por aí, algures... Preferia que ela tivesse morrido! Sentei-me ao seu lado e pus-lhe o braço em torno da cintura. Nunca te hei de abandonar... Eu sei, - respondeu ela encostando a cabeça ao meu ombro. McKale era a minha guia no universo feminino. Certa vez, quis beijar-me só para ver o que é que os beijos na boca tinham de tão especial. Beijámo-nos durante cerca de cinco minutos. Eu gostei..., muito! No entanto, não tenho a certeza que se tenha passado o mesmo com ela, pois nunca mais pediu para repetirmos a experiência. Portanto, não a repetimos». In Richard P. Evans, A Caminhada, 2010, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2012, ISBN 978-989-637-465-5.

Cortesia de SEmergência/JDACT