terça-feira, 25 de agosto de 2015

Grácia Nasi. Esther Mucznik. «Contrariamente aos Reis Católicos que cumpriram o estipulado, Manuel I não manteve a sua promessa de deixar sair de Portugal os judeus que o quisessem. A sua decisão era outra: mantê-los no reino e aos seus ‘cabedais’»

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Um rei, um reino, uma religião
«(…) A estes, como castigo, foram retiradas à força duas mil crianças, de dois a dez anos e entregues a Álvaro Caminha, em 1493, para as levar consigo depois de baptizadas à capitania da ilha de S. Tomé que lhe fora oferecida pelo rei. Grande parte dos meninos de S. Tomé, nome pelo qual ficaram tristemente conhecidos, pereceu devido às terríveis condições da ilha, para onde ninguém queria ir. Para além da conversão das crianças, o objectivo era povoar a ilha, o que acabou por acontecer através daqueles que conseguiram resistir aos lagartos, serpes e outras muitas peçonhentas bichas (...) que os tragaram quase todos. Aos sobreviventes, Álvaro Caminha deu em testamento em 1499, herdades, gado e escravos negros trazidos de África, conseguindo assim estabelecer a primeira economia açucareira dos Trópicos.

Que os judeus e mouros forros se saiam destes reynos...
Com a morte de João II e a subida ao trono de Manuel I, em 1495, a situação melhorou inicialmente para os judeus, em particular através da libertação, por ordem real, dos judeus castelhanos feitos escravos. A inscrição da lápide da sinagoga em Gouveia, datada de 1496 e descoberta em 1967, mostra a confiança que os judeus sentiam no início do seu reinado: … a glória desta última casa será maior do que a primeira. Mas essa confiança depressa se desvaneceu. Interessado no casamento com dona Isabel, a filha mais velha dos Reis Católicos, o monarca Manuel I cedeu à sua chantagem: casamento, sim, mas apenas em troca da expulsão de todos os judeus de Portugal. A própria infanta escreveu a Manuel I recusando-se a entrar em Portugal enquanto o país não estivesse esvaziado de todos os hereges.
Contra a vontade de uma parte significativa do seu próprio conselho, receoso da perda de uma comunidade laboriosa e economicamente importante, e em total contradição com a sua própria política anterior, Manuel I assinou o tratado de casamento a 29 de Novembro de 1496. E poucos dias mais tarde, a 5 de Dezembro, decretava em Muge, perto de Santarém, a expulsão de todos os judeus e mouros no prazo de dez meses: ... Determinamos, e Mandamos que da pubricaçam desta Nossa Ley e Determinaçam atá, per todo o mez de Outubro do anno do Nacimento de Nosso Senhor de mil e quatrocentos e nouenta e sete, todos os Judeus, e Mouros forros, que em Nosso Reino ouuer, se saiam fóra delles, sob pena de morte natural, e perder as fazendas... Em troca comprometia-se a deixá-los sair liuremente com todas as suas fazendas e a assegurar-lhes transporte; pera sua hida lhe Daremos todo o auiamento, e despacho que cumprir.
No édito de expulsão, Manuel I não se preocupa em fornecer grandes explicações. Defende que a salvação dos cristãos passa pela expulsão dos judeus e mouros forros porque obstinados no ódio da nossa Santa Fé Católica de Cristo Nosso Senhor. Cita os grandes males e blasfémias que os judeus filhos da maldição, cometiam desde sempre contra a fé cristã, o mau exemplo que davam a muitos cristãos e finalmente outros motivos consideráveis e urgentes, não especificados. Um pequeno texto, uma tragédia imensa. O édito de expulsão foi o golpe de misericórdia no judaísmo ibérico que durante mais de mil anos florescera na Península, e o culminar de um caminho iniciado em Espanha pelos Reis Católicos com a instauração da (maldita) Inquisição espanhola em 1481, e o decreto de expulsão de 1492. O objectivo era a unidade religiosa e política, um Rei, um Reino, uma Religião. Aparentemente tinha sido conseguido.

… e ali lhes deitatam a sua água de baptismo...
Contrariamente aos Reis Católicos que cumpriram o estipulado, Manuel I não manteve a sua promessa de deixar sair de Portugal os judeus que o quisessem. A sua decisão, provavelmente já anterior à assinatura do decreto de expulsão, era outra: mantê-los no reino e aos seus cabedais, não como judeus, mas sim como cristãos». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.

Cortesia de ELivros/JDACT