sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O que Aconteceu a Lucrécia de Médici? Gabrielle Kimm. «Ele apanhou-a e atirou-se a ela. Agarrou-a pelos joelhos e derrubou-a. Ela levantou os braços para proteger a cara e, ao cair, faltou-lhe o ar. Antes de ter tempo sequer para recuperar o fôlego, o rapaz soltou-lhe as pernas…»

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«Ele não detecta nenhum sopro. Nem movimento. Nem vida. Acabou. Ao enfiar a mão debaixo do tecido amachucado da camisa dela, os seus dedos tocam num seio pequeno: já frio, raiado de azul-claro, como mármore maleável. Ela não é mais do que uma estátua mole. As curvas geladas deslizam confortavelmente sob o calor da concha da sua mão, que lhe acaricia a pele e se surpreende com esta estranha impassibilidade. Ao contemplá-la, ele vê por fim a imagem que desejava há tantos meses. Ela é bela. Silente e sem vida, ela é na verdade bela. O reflexo perfeito voltou e o espelho está de novo sem mácula. Ele imagina o calor da sua própria carne dentro daquela imobilidade fria e arrepia-se. Sabe que tem de o fazer».

A sua última duquesa. Toscânia 1559
Um calor pesado instalara-se na tarde, obrigando a paisagem a uma imobilidade cintilante. A casa imponente era alta, maciça e quadrada, e o tom ocre da pedra e o vermelho descorado dos telhados com goteiras davam um ar mais suave aos muros semelhantes aos de uma fortaleza; à luz clara do dia, as ameias arqueadas dos telhados projectavam colheradas de sombras azul-escuras a todo o comprimento dos muros. As cigarras cantavam ritmadamente, sem parar, ora em coro ora em dessintonia, e uma sensação soporífera de letargia quente pairava sobre o castelo como um cobertor cozido pelo sol. Uma porta abriu-se com ruído nas traseiras da casa e, dando um grito, uma mulher jovem saiu a correr, agarrada às saias e com a respiração entrecortada. Olhou para trás de relance, arquejou e aumentou a velocidade. Outro vulto, masculino, saiu pela mesma porta atrás dela. A sua sombra lembrava uma mancha de tinta suja debaixo dos pés. Por um momento, foi como se as cigarras sustivessem o fôlego: os únicos sons no meio do silêncio entorpecedor eram os passos assustados da rapariga e o andar mais pesado do jovem que se aproximava depressa. Ela correu ao longo de um caminho entre canteiros de flores e plantas, atravessou um deles frenética e, a lamuriar, dirigiu-se para a vegetação mais alta juntos dos portões que conduziam à horta murada.
Ele apanhou-a e atirou-se a ela. Agarrou-a pelos joelhos e derrubou-a. Ela levantou os braços para proteger a cara e, ao cair, faltou-lhe o ar. Antes de ter tempo sequer para recuperar o fôlego, o rapaz soltou-lhe as pernas e obrigou-a a deitar-se de costas, agarrando-a pelos pulsos e encostando-os às ervas, ao lado da cabeça. Ela debateu-se, mas ele foi mais forte. Segurou-a pelas ancas com os joelhos, e a cara dos dois jovens ficou a menos de trinta centímetros de distância. Durante uma fracção de segundo, os olhares de ambos cruzaram-se. És um patife, Giovani!, exclamou a rapariga, soltando uma gargalhada. Larga-me! Tu és..., disse Giovanni, a arfar, demasiado vagarosa, mais nada. Vá..., admite! Sem largar os pulsos finos dela, o rapaz apoiou-se ainda mais neles; apesar de continuar a estrebuchar, a rapariga não conseguiu sentar-se. Acumulou saliva na boca e levantou a cabeça. Giovanni sorriu. Tu não te atreverias, exclamou ele, mas ela respirou fundo pelo nariz. Giovanni rolou e ficou deitado de costas, fora do seu alcance, fazendo uma caret. Meu Deus, és nojenta, Lucrécia!
Lucrécia sentou-se, cuspiu para o chão e em seguida deitou-lhe a língua de fora. Giovanni deixou-se ficar, estatelado, com a cara meio escondida nas plantas emaranhadas; ergueu uma sobrancelha e fez-lhe um sorriso trocista. Lucrécia atirou-se a ele, mas o rapaz agarrou-a pelo pé, fê-la cair de costas, e ambos ficaram estiraçados no meio da vegetação, a rir sem motivo. Uma voz ao longe sobressaltou-os. Lucrécia! Olharam um para o outro. Lucrécia, cara, onde estás? Suspirando, Lucrécia disse: Tenho de ir..., já devia estar de volta há horas. Anda comigo, Vanni. O rapaz levantou-se de um salto, todo ele pernalta como uma marioneta ansiosa, e estendeu os braços para ajudar a prima a erguer-se. Ela pegou-lhe na mão e levantou-se, sorridente, mas, para sua surpresa, Giovanni não retribuiu o sorriso. Em contrapartida, franziu um pouco o sobrolho, de repente ficou atrapalhado e constrangido, esfregou os olhos com o punho e corou. A voz fez-se ouvir outra vez.
Lucrécia passou os dedos pelos cabelos e encontrou terra agarrada à testa; afastou-a e examinou a sujidade alojada debaixo das unhas. Virou as mãos. Tinha as palmas esfoladas e sujas das ervas e rasgara mais um vestido: o grande rasgão no sítio da anca não era do género daqueles que se podiam consertar. Com o tecido roto a esvoaçar, começou a dirigir-se para à casa na companhia do primo. A Giulietta vai zangar-se comigo outra vez, Vanni, disse. Ela acha que eu devia... Lucrécia fez uma voz mais grave e uma careta, imitando o ar solene e o nariz adunco da ama, comportar-me como uma herdeira Médici, com uns impressionantes dezasseis anos. Empinou o queixo, em jeito de troça, e a expressão de Giovanni desanuviou-se outra vez». In Gabrielle Kimm, A sua Última Duquesa, O que aconteceu a Lucrécia de Médici?, 2010, tradução de Maria Duarte, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-657-328-7.

Cortesia de Planeta/JDACT