terça-feira, 11 de agosto de 2015

O Fio do Tempo. João Paulo O. Costa. «Filipa tinha dezassete anos e era um pouco mais baixa que ele, tinha longos cabelos castanhos caindo pelas costas, magra, bem-proporcionada, grandes olhos cor de amêndoa. Álvaro deixara-se levar pela tentação…»

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A ampulheta
«(…) Excitado pelo corpo da mulher, angustiado por ver o tempo passar rapidamente, fascinado pelo objecto que nunca vira antes, Álvaro teve uma má estreia. Atrapalhou-se, não disse coisa com coisa e não fez o que devia. A volúpia eclipsara-se perante a imagem do impiedoso fio de areia a anunciar-lhe o fim iminente da companhia da bela mulher. E quando os últimos grãos se aproximavam do orifício, ainda não dera com o dela. A voz sedutora de Filipa transformou-se num ronco, e, com uma forte palmada no rabo, rosnou-lhe: Despacha-te, ou põe-te a mexer, cabrito. Envergonhado, Álvaro ainda se apercebeu da sensação de estar dentro de uma mulher, porém, ela atirou-o ao chão assim que o último grão de areia se precipitou na âmbula inferior.
Então, fidalgote, não sabes agradar a uma mulher? Tu é que tinhas de me satisfazer, respondeu, indignado. - Agrado aos homens que me procuram, mas não desmamo cabritos. E ainda para mais, um com poucas moedas e que passa o tempo a olhar para esta coisa. Voltou-lhe as costas e começou a vestir-se. Álvaro recompôs-se e saiu. Num impulso pegou na ampulheta e levou-a. Quando se apercebeu do roubo, Filipa foi no seu encalço, no entanto, ao acercar-se do rapaz, não viu o adolescente hesitante que acabara de humilhar; tinha à sua frente um fidalgo senhor de si. Estavam na rua, e não dentro da casa em que era rainha. Ainda que em desvantagem, a rapariga enfrentou-o; sua voz, porém, era agora menos agreste. Senhor, deveis ter levado convosco, sem querer, um objecto que me pertence. Não foi sem querer. Trataste-ne mal por causa dela. Confisco-ta. E tem cuidado, pois correm vozes de que és uma bruxa ao serviço de Belzebu. Não queiras que eu o confirme. Um calafrio percorreu o corpo de Filipa, que olhou, ssustada, para Álvaro. Não fostes homem na cama e agora ameaçais-me para defender o vosso roubo, declarou, apesar do medo. Ao sentir o desespero da rapariga, Álvaro arrependeu-se do que disse. Estava irritado, mas excedera-se. Espera, Filipa. Ah, afinal sabeis o meu nome... Não te quero mal, porém, foste muito rude comigo.
Filipa suspirou. Há muito que aprendera a ser dura com os homens que a procuravam, e talvez se tivesse excedido com o fidalgote. Nas sombras da sua habitação não reconhecera o jovem cortesão. Recebi-vos por dinheiro, e cada moeda vale um pedaço de tempo. Vós atrapalhastes-vos, e se vos deixasse continuar depois de a areia acabar, seria enganada..., e já o fui que baste. A irritação pelo fracasso já havia passado, e Álvaro, que continuava fascinado pela ampulheta, não queria passar por ladrão. Gostava de ficar com esta coisa. Uma ampulheta, jovem fidalgo. Seja..., esta ampulheta. Trago-te um vestido... Ela não parecia convencida. ... e um colar bonito. Volto com mais moedas, e tu ensinas-me a ser um homem. Filipa suspirou. O receio de ser lançada à fogueira foi ultrapassado. O moço parecia sincero. Podia tornar-se a favorita de um fidalgo. Não vos fareis homem na minha cama nem na de outra mulher, todavia, se fordes gentil e se me garantirdes sustento, posso ser só vossa.
Filipa tinha dezassete anos e era um pouco mais baixa que ele, tinha longos cabelos castanhos caindo pelas costas, magra, bem-proporcionada, grandes olhos cor de amêndoa. Álvaro deixara-se levar pela tentação e movimentara a cabeça em sinal de assentimento. Volto amanhã. Álvaro sentiu um calafrio. Ficara com a ampulheta a 4 de Outubro de 1414, fazia naquele dia oitenta e seis anos. Passara a tarde fechado na sua câmara, olhando para o fio aparentemente imóvel de partículas e pensando em Filipa. Como haveria de a sustentar? Podia pedir o vestido e o colar a Guiomar, irmã de Tristão Coutinho, seu grande amigo. O problema era o modo como poderia manter Filipa, tendo em conta que ele, como escudeiro d’e1-rei, tinha de acompanhar o monarca nas suas constantes deambulações pelo reino. Na verdade, el-rei João I e a rainha dona Filipa opunham-se a que os seus cavaleiros e escudeiros mantivessem barregãs». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.

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