segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A Jangada de Pedra. José Saramago. «A primeira fenda apareceu numa grande laje natural, lisa como a mesa dos ventos, algures nestes Montes Alberes que, no extremo oriental da cordilheira, compassadamente vão baixando para o mar e por onde agora vagueiam…»

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«A coragem que vence o medo tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa

«(…) Vinha o caminhante de nascente para poente, calhara assim o caminho e o passeio, mas, por ter de ladear uma grande alverca, virou para o sul em curva, ao longo da margem. Para o fim da manhã começará a aquecer, por enquanto há uma brisa frescal e límpida, lástima não poder guardá-la no bolso para quando viesse a ser precisa na hora do calor. Ia José Anaiço discorrendo estes pensamentos, vagos e involuntários como se não lhe pertencessem, quando deu por que os estorninhos tinham ficado para trás, esvoaçavam além, onde o carreiro faz a curva para acompanhar a lagoa, procedimento sem dúvida extraordinário, mas enfim, como se costuma dizer, quem vai vai, quem está está, adeus passarinhos. José Anaiço acabou de contornar a alverca, quase meia hora de passagem difícil, entre espadanas e silvados, e retomou o caminho primeiro, na direcção em que antes viera, de oriente para ocidente como o sol, quando de súbito, vruuuu, apareceram outra vez os estorninhos, onde teriam estado eles metidos. Ora, para este caso não há explicação. Se um bando de estorninhos acompanha um homem em seu passeio matinal, como um cão fiel ao dono, se espera por ele o tempo de dar a volta a uma lagoa e depois o segue como antes vinha fazendo, não se lhe peça que diga ou averigue os motivos, pássaros não têm razões mas instintos, tantas vezes vagos e involuntários como se não nos pertencessem, falávamos dos instintos, mas também das razões e dos motivos. E também não perguntemos a José Anaiço quem é e o que faz na vida, donde veio e para onde vai, o que dele houver de saber-se só por ele se saberá, e esta discrição, esta parcimónia informativa, deverão igualmente contemplar Joana Carda e a sua vara de negrilho, Joaquim Sassa e a pedra que atirou ao mar, Pedro Orce e a cadeira donde se levantou, as vidas não começam quando as pessoas nascem, se assim fosse, cada dia era um dia ganho, as vidas principiam mais tarde, quantas vezes tarde de mais, para não falar daquelas que mal tendo começado já se acabaram, por isso é que o outro gritou, Ali, quem escreverá a história do que poderia ter sido.
E agora esta mulher, Maria Guavaira lhe chamam, estranho nome embora não gerúndio, que subiu ao sótão da casa e encontrou um pé-de-meia velho, dos antigos e verdadeiros que serviam para guardar dinheiro tão bem como uma casa-forte, simbólicos pecúlios, graciosas poupanças, e achando-o vazio pôs-se a desfazer-lhe as malhas, por desfastio de quem não tem outra coisa em que ocupar as mãos. Passou uma hora e outra e outra, e o longo fio de lã azul não pára de cair, porém o pé-de-meia parece não diminuir de tamanho, não bastavam os quatro enigmas já falados, este nos demonstra que, ao menos uma vez, o conteúdo pôde ser maior que o continente. A esta casa silenciosa não chega o rumor das ondas do mar, de passarem aves a sombra não escurece a janela, cães haverá mas não ladram, a terra, se tremeu, não treme. Aos pés da desenredadeira o fio é a montanha que vai crescendo. Maria Guavaira não se chama Ariadne, com este fio não sairemos do labirinto, acaso com ele conseguiremos enfim perder-nos. A ponta, onde está.
A primeira fenda apareceu numa grande laje natural, lisa como a mesa dos ventos, algures nestes Montes Alberes que, no extremo oriental da cordilheira, compassadamente vão baixando para o mar e por onde agora vagueiam os mal-aventurados cães de Cerbère, alusão que não é descabida no tempo e no lugar, pois todas estas coisas, mesmo quando o não parecerem, estão ligadas entre si. Expulso, como foi dito, da pitança doméstica, e portanto forçado pela necessidade a recordar na memória inconsciente manhas dos seus antepassados caçadores para conseguir filar qualquer desgarrado láparo, um desses cães, de seu nome Ardent, graças ao finíssimo ouvido de que está dotada a espécie, terá percebido o estalar da pedra e, só não rosnando porque não pode, veio para ela, dilatando os narizes, de pêlo eriçado, com tanto de curiosidade quanto de medo. A fenda, subtil, lembraria a observador humano um risco feito com a ponta aguçada de um lápis, muito diferente daquele outro traço com um pau, em terra dura, ou na poeira solta e macia, ou na lama, se com tais devaneios perdêssemos nós tempo. Porém, enquanto o cão se aproximava, a fenda alargou-se mais, tornou-se funda e avançou, rasgando a pedra, até aos extremos da laje, e depois para lá e para cá, cabia dentro a mão inteira, o braço em grossura e comprimento, se estivesse aqui homem de coragem para medir-se com o fenómeno. O cão Ardent rondava, inquieto, mas não podia fugir, atraído por aquela serpente de que já não se via nem a cabeça nem a cauda, e subitamente perdido, sem saber de que lado ficar, se em França, onde estava, se em Espanha, já distante três palmos. Mas este cão, graças a Deus, não é dos que se acomodam às situações, a prova é que, de um salto, galgou o abismo, com perdão do evidente exagero vocabular, e achou-se do lado de aquém, preferiu as regiões infernais, nunca saberemos que nostalgias movem a alma de um cão, que sonhos, que tentações». In José Saramago, A Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição, Reunidos, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-210-289-6.

Cortesia de Caminho/JDACT