sábado, 12 de novembro de 2016

Corpo Reflectido. Cidália Dinis. «Uma lancinante incerteza desfaz o abrigo que levantamos junto ao coração, e os braços, último dique deixamos ruir ao longo da pátria assolada do corpo»

Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) Daqui, resultará uma certa familiaridade com Eugénio de Andrade, visível na arquitectura extremamente clara e cristalina que os seus poemas reflectem, na preferência pelas palavras nuas e limpas, numa viva comunicação das necessidades primeiras do Corpo e da Alma. É desta forma que Inês Lourenço, no livro Aproximações a Eugénio de Andrade, se revê:

Liturgia
Intensamente te leio e reconheço
o esplendor que me religa
para sempre aos teus olhos, adâmicos,
e indemnes à usura
das palavras do mundo. Nessa nudez
celebras a fuga
de um corcel travestido de cinzas
no rito do poema nascido.

Contudo, Inês Lourenço, impõe-se num outro sentido, deixa transparecer uma escrita dúctil e elegante, perpassada por uma voz acutilante, sobretudo quando no seu mundo encontramos personagens da erudição como Gould, Suggia, Wenders, ou quando se refere a um deus ou semideus da galeria greco-romana:
Janus
A névoa de Janeiro
contagia os olhos, os pés hesitam
nos degraus molhados. Uma
lancinante incerteza desfaz o abrigo
que levantamos junto ao
coração, e os braços, último
dique deixamos ruir
ao longo da pátria assolada
do corpo.

É nesta capacidade de conferir ao discurso um sopro renovador e uma sensibilidade única, veemente, que a sua poesia se reveste de originalidade, bem ao gosto de Nuno Júdice, outro poeta cuja obra espelha o equilíbrio entre a matéria do poema e as múltiplas referências eruditas que vão brotando da sua pena. No entanto, Inês Lourenço manterá, numa diferença nítida, a sua obra imbuída de profundidade, espelhando um enunciado mais afectivo e pessoal na reconstrução do lugar e do Corpo do que o daquele poeta:
I Will Kiss Thy Mouth
Do fundo da cisterna
a tua voz eleva-se e nenhuma
masmorra abafa este ardor
por ela aceso, no derradeiro véu,
a minha pele. Nem as proféticas
maldições, nem o teu repúdio,
nem a luxúria do tetrarca
me impedem de cumprir
o mandamento primeiro
da paixão: a colheita
da tua face.

N’A Enganosa Respiração da Manhã, mais do que uma atenta observação da realidade que a rodeia, realidade que é corpo, sangue, luz, ar, mundo subtil entre o céu e a terra, o leitor é confrontado não só com questões, como também com poéticas soluções que vão sendo desenhadas e que estão bem patentes nos poemas que se seguem:
Animais Arrancados em Redor
Para enterrar um corpo
quantas pequenas ervas
e escondidas larvas
são aniquiladas. O golpe
seco da pá desentranha os
mínimos seres, com
o rumor de um barco vazio
que ainda singra
contra a falésia.

Pentagrama
Uma estrela é um corpo
em estado de brilho, a cinco
mil graus de temperatura. O brilho
do núcleo (um fluído ou um plasma?)
protege-se até chegar à superfície.
Que parte dele fica aprisionada?

Pedra angular da sua obra é também o pacto que a sua poesia estabelece com a música, onde, numa espécie de construção orquestral, corporal, o ruído sibilante do tráfego se confunde e funde nos sentidos, na inocência feroz do olhar, na procura da primeira personagem, Orpheu». In Cidália Dinis, Corpo Reflectido, Trabalho apresentado no seminário Caminhos da Poesia Portuguesa Contemporânea, do Modernismo ao Pós-modernismo, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], Wikipedia.
Cortesia de RFLPorto/JDACT