sábado, 5 de novembro de 2016

Para lá da Terra do Fogo Eduardo Belgrano Rawson. «No Inverno desciam até ao mar. Chegavam esfomeados da montanha e durante um bom momento antes de transpôr as últimas árvores os seus olhos brilhantes contemplavam a escuridão da costa»

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«Sabiam os pontos cardeais,
as estações do ano,
e que a Lua viajava à volta da Terra,
enquanto esta girava em torno do Sol.
E também sabiam que a América estava neste mundo,
que a Argentina era um país americano,
que era uma república
e que eles eram argentinos». In Eduardo Holmberg.

A ilha dos Guanacos
«No Inverno desciam até ao mar. Chegavam esfomeados da montanha e durante um bom momento antes de transpôr as últimas árvores os seus olhos brilhantes contemplavam a escuridão da costa. A praia estava invariavelmente vazia, mas os guanacos tinham boa memória e não davam um passo na areia até o sol despontar por completo dissipando o nevoeiro. Então era possível que os guanacos topassem com um cachalote varado ou uma raposa mexilhoeira, mas isto não lhes chamava a atenção mais do que o voo das procelárias ou a fumarada de um barco. Os barcos mantinham-se à distância, mas era frequente a ilha ficar toda coberta. As suas águas tinham muito má fama e ninguém, à excepção dos ingleses, sabia ao certo a localização dos barcos afundados como O Voador de Aberdeen ou a verdadeira profundidade do banco de Punta Salida ou sequer se existia aquele banco. De qualquer modo, ao chegar a um certo ponto, os barcos executavam uma cuidadosa manobra em direcção do mar, como se fosse ali que estivesse o banco.
A presença dos guanacos durava muito pouco, dado que no passado as suas piores confrontações com os canaleses tinham-se registado naquela praia. Pastavam um momento na costa e bebiam a água salgada, enquanto vigiavam as crias que costumavam afastar-se da manada. A seguir enfiavam-se discretamente no bosque. Era então difícil encontrá-los, embora de noite se ouvissem as suas risadas. A pessoa podia imaginá-los a formar filas sob a neve, até que o frio acabava por silenciá-los. Depois deixavam de dar sinais de vida, mas nas árvores subsistia o terror que deixavam atrás de si. Quando um barco se afundava naquelas águas, quase não havia sobreviventes. De vez em quando um ou outro afogado branco chegava à praia. Um afogado branco era alguém fulminado por síncope ao cair na água gelada, sem tempo para dar um único grito ou uma só mísera braçada. Também havia afogados azuis. Mas o normal eram os afogados brancos. Essa gente tinha um aspecto terrível, nada de semelhante aos afogados comuns.
De qualquer modo, o South America Pilot não dispensava conselhos para o caso de naufrágio e propunha todas as rotas possíveis para chegar até Abingdon. Nos tempos do velho Dobson, a missão chegara a contar com mais de duzentos membros, provenientes de todo o arquipélago. Segundo o Pilot, os missionários faziam milagres com estas criaturas que eram dignas de toda a confiança. Só se tinha de prestar atenção a um único detalhe: apenas os canaleses convertidos traziam consigo o papelinho administrado pela missão que certificava a sua condição de amigos. Porém a última edição do Pilot datava de 1902 e nessa altura os canaleses estavam quase a ser apagados do mapa. Na missão já só restava a viúva do reverendo Dobson, a qual desde a partida dos canaleses vivia à espera de um milagre que a retivesse naquela terra. Cada barco que passava em direcção do Este renovava a sua decisão de partir. A viúva apontava o seu óculo para o casco. Se o barco era argentino ou chileno içava o pavilhão apropriado no mastro da missão; se fosse um barco inglês, desfraldava a sua própria bandeira e içava-a, rogando para que o barco parasse as máquinas e que assim isto trouxesse alguma mudança na sua vida». In Eduardo Belgrano Rawson, Para lá da Terra do Fogo, 1991, 1999, Quetzal Editores, 2009, Lisboa, ISBN 978-972-564-784-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT