quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O Príncipe. Nicolau Maquiavel. «A vida havia-os separado. Vettori vive uma vida prestigiada, cortesã, despreocupada, lamentando apenas a ociosidade e o ter de autoconter-se na sua postura que, não fossem as conveniências»

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Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Para que os de Medici saibam que, nada o ligando aos conjurados, a execução destes não lhe afecta sequer a consciência, faz-lhes chegar às mãos aquele verso cínico: vadin in buona ora. Sofrido o cárcere, eis uma natureza que a privação da liberdade moldara e que se vai refinar agora, lançado ao desprezo, o ócio dando-lhe oportunidade, os áureos tempos antigos apontando-lhe o horizonte, o imaginário de grandeza passada tornando-o paradigma do cinismo na acção, a mofa uma forma de mentir com a verdade, de confundir o mal que aconselha com a maldade de que parece mero observador. Tudo surge a seu tempo. De homem de acção transforma-se em pensador, sendo a maioria dos seus escritos anteriores relatórios das actividades diplomáticas. Publicara, é certo, o que poderia passar por poesia pura, as suas primeiras Decenais, sob o título de Nicolai Maclavelli florentini compendium rerum decennio in Italia gestarum, 183 tercetos escritos em quinze dias, obra que era uma narrativa laudatória dos acontecimentos vividos entre 1494 e 1504, estando o autor ao serviço do governo de Soderini e do seu projecto de Ordinanza fiorentina.
O mundo mudara. A política que servira não o quer. A pena é a sua companhia, a necessidade a sua única virtude. Ante a tragédia, o sorriso. Há que escrever, mas, a anteceder qualquer outra escrita. a que permita viver. É pela necessidade que, logo no dia 13, escreve ao seu amigo Francesco Vettori (nasceu em 1474 e faleceu em 1139, sendo mais novo do que Maquiavel. Conheceram-se no quadro da actividade diplomática de ambos e tornaram-se amigos; trocaram uma longa série de epísto1as, sobretudo a partir do momento em que o secretário caiu em desgraça; A leitura deste epistolário permite reconstruir o perfil psicológico e o ambiente histórico em que o nosso autor viveu; cartas de aparência severa e grave, elas escondem, como diria Maquiavel numa delas, escrita a 31 de Janeiro de 1515, duas criaturas que, tal como a natureza, são variadas na essência do seu ser), designado, desde 30 de Dezembro de 1512, embaixador (oratore) da República junto da Cúria, em Roma, rogando-lhe que interceda por si e pelo irmão Totto.
A vida havia-os separado. Vettori vive uma vida prestigiada, cortesã, despreocupada, lamentando apenas a ociosidade e o ter de autoconter-se na sua postura que, não fossem as conveniências, seria libertina e irresponsável; Machiavelli conhece agora a penúria, o confinamento, a luta pelo pão, a ausência dos círculos onde se morrera e de meios para gozar a boa vida, em breve estará retirado para a pobreza rural, local onde tenta, escondendo a sua diminuída pessoa, salvar-se do desdém com que outros o possam olhar. A carta é um acto de contrição, um lamento, uma forma submissa de pedir. Maquiavel promete ser mais cauteloso e espera que os tempos novos sejam mais liberais e menos suspeitosos. Roga que o irmão seja colocado entre os familiares do papa de Medici e com isso beneficiado. Para si próprio suplica que o sumo pontífice, ou os seus, o possam aproveitar em qualche cose. A humildade no estender da mão mostra a que ponto a necessidade já enfraquece o orgulho. Escreve de novo, cinco dias volvidos, ao seu amigo Magnifice Orator, respondendo à missiva que, entretanto, recebera daquele a quem rogara ajuda e que, cauteloso, se mostra parco em prometer (a carta de Francesco é um exemplo acabado de refinada subtileza ante o infortúnio que não pode socorrer. Por um lado anima-o, por outro distancia-se; Maquiavel, inteligente e habituado ao género, deve ter compreendido a indisponibilidade do amigo e a hostilidade do meio em que este se movia, mas responde, considerando a carta gratíssima, e amorosa, e, num assomo de dignidade, deixa claro que viverá como puder, com os poucos meios de que dispõe).
Sem possibilidade de subsistir na cidade, jogando na prudência de não espicaçar a sorte, Maquiavel retira-se para a sua modesta propriedade em Sant’Andrea, localidade de La Strada, na Percussina, junto a San Casciano in Val di Pesa, na Toscana, enfrentando a paz agreste do exílio. Dali escreve, a 9 de Abril, uma nova carta a Francesco, a qual assina, contristado, como Niccolò Machiavelli, quondam Secret, (outrora secretário). É um Maquiavel desalentado, que se conformou com não desejar coisa alguma com paixão, mas que tenta, com afectuosa cortesia, não se mostrar excessivamente decaído na sua desgraçada fortuna». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT