sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Seres Mágicos em Portugal. Vanessa Fidalgo. «E embora a maioria de nós insista em não acreditar em lendas e contos de fadas, as narrativas fantásticas não deixam de ter um papel de extrema importância também nos nossos dias»

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«(…) Eles próprios ficam agora surpreendidos com os encantos e o poder de sugestão que as suas histórias tiveram outrora. Um certo embaraço tolhe agora dona Adelina, uma simpática e muito lúcida octogenária que tive a felicidade de conhecer e que me recebeu com um carinho incomparável na soleira da sua casa, na freguesia da Bemposta, perto de Abrantes. De carrapito branco e olhos doces, dona Adelina não se fez rogada a uma boa conversa. Cada palavra foi puxando outra palavra, num diálogo adoçado pelo bolo quentinho que fizera questão de pôr a crescer no forno para receber os forasteiros. E assim, dona Adelina, que é a única do seu tempo que por ali ainda está lúcida e de boa saúde para tais conversas, lá foi desfiando um rol de histórias sobre procissões de fantasmas que outrora varriam a rua da Assaquia, mas também o fado de um maléfico lobisomem que antigamente corria as ruas pela noite, estragava o pão que cozia de madrugada nos fornos e, claro está, tinha o condão de a assustar nos dias idos da infância. Um lobisomem que assim sobreviveu até aos dias de hoje e cujo rasto deambula agora pelas páginas que se seguem. Mas nos dias de hoje, até dona Adelina coça o queixo e pousa os olhos no horizonte, pensativa quando reflecte sobre a inverosimilhança das suas histórias, reconhecendo a insensatez da credulidade que na juventude lhe devotara: eram coisas que se diziam e contavam naqueles tempos. Naquela altura era tudo assim..., muito misterioso. Devia ser por causa do escuro. Só havia velas à noite! Contava-se e as pessoas acreditavam, claro está. E ri-se, levando as mãos à faca para cortar e oferecer outra fatia de bolo de cenoura, tão generosa quanto as palavras que partilha com os forasteiros sem esperar nada em troca. Mas estarão as lendas encerradas apenas nas aldeias e na memória dos nossos anciãos? É claro que não, e uma breve viagem pela internet espelha o quanto estas narrativas fascinam gente de todas as idades e eras tecnológicas. É por isso que neste livro há histórias dos avós, mas também dos seus netos, que as partilham em sítios específicos, como redes sociais próprias. Em Portugal, o Forum Portugal Paranormal é um bom exemplo disso, e os seus utilizadores foram, neste livro, os principais narradores vivos que encontrei entre as gerações mais jovens, os quais conseguiram surpreender-me ao brindarem-me com incríveis relatos inéditos.
Pena é que nem todos tenham acedido a revelar a sua verdadeira identidade, preferindo que as suas narrações se mantivessem identificáveis pelos seus nicknames. A par com a identificação dos interlocutores entrevistados para este livro, segue-se, em primeiro lugar, a indicação do local de recolha e, finalmente, da localidade a que se refere a história, sempre que foi possível apurar. Através desta pesquisa, foi-me ainda revelada uma característica bastante interessante da actual situação do nosso património lendário: se, por um lado, as lendas quase desapareceram na oralidade, por outro, passaram a ser contadas de outra forma e por outros meios, aqueles que a era digital nos trouxe para partilhar tudo e mais alguma coisa. E embora a maioria de nós insista em não acreditar em lendas e contos de fadas, as narrativas fantásticas não deixam de ter um papel de extrema importância também nos nossos dias, que está sobejamente teorizado. Wolfganag Mieder, professor de Filologia Alemã e Folclore na universidade de Vermont e vencedor do Prémio Europeu de Contos de Fadas em 2012, pesquisa há mais de 40 anos sobre esta temática.
Diz Mieder que, embora aconteça amiúde as narrativas antigas serem adaptadas ao momento presente, mantêm geralmente o seu cerne original. A oposição entre o bem e o mal está sempre presente, atormentando as escolhas do homem desde que o Mundo é Mundo: são os finais didácticos. É claro que eles contêm sempre algo do mal, mas a beleza das histórias está na ideia de que há sempre uma certa justiça e que o bem acaba por vencer». In Vanessa Fidalgo, Histórias de um Portugal Assombrado, 2012, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-371-3. 

Cortesia de EdosLivros/JDACT