quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Papas. Imperadores e Hereges na Idade Média. José D’Assunção Barros. «Para a imagem, hoje bastante questionada, da Roma assassinada pelos bárbaros, os saques visigodo e vândalo parecem funcionar como duas facadas iniciais»

jdact e wikipedia

«(…) Do primeiro grupo de análises indicado, aquele que metaforiza o Império Romano como um grande ser vivo, tornou-se célebre e emblemática a frase do historiador Piganiol, que costumava afirmar que a civilização romana não morreu de morte natural; foi assassinada. A grande crise económica, política e militar do século III, marcada por intensas guerras civis, para Piganiol teria dado origem a uma nova concepção de poder imperial que se consolidaria no futuro Império Bizantino. A parte ocidental, contudo, não teria resistido aos avanços bárbaros, para utilizar esta expressão do próprio historiador, de modo que aqui a explicação da queda do Império é direccionada para os factores externos. Nesta mesma esteira, Arther Ferril (1989) defende a ideia de que o grande marco da queda seria o ano 476, por ocasião da deposição de Rómulo Augusto, o último imperador romano do Ocidente, por Odoacro, o que teria contribuído decisivamente para destruição do poderio militar romano. Guardemos esta primeira posição: ela nos revela o olhar do corte que vem de fora, da ruptura mais imediata. Outras datas importantes para este tipo de leitura da passagem que privilegia os eventos bélicos podem ser buscadas nos momentos emblemáticos em que povos não latinos saqueiam Roma, berço e símbolo máximo do poderio do Império Romano. Neste sentido, o saque de Roma pelos visigodos sob o comando de Alarico, em 410 d.C., vivido de maneira particularmente traumática pelos habitantes de Roma e de modo mais geral pelos cidadãos do Império nas diversas províncias, bem como o saque de Roma pelos vândalos em 455 d.C., parecem prenunciar de uma certa óptica este acontecimento aparentemente mais definitivo que é a deposição de Rómulo Augusto por Odoacro, rei dos hérulos, em 476 d.C.. Para a imagem, hoje bastante questionada, da Roma assassinada pelos bárbaros, os saques visigodo e vândalo parecem funcionar como duas facadas iniciais, e de facto pode-se dizer que de algum modo estes acontecimentos contribuíram significativamente para ferir irremediavelmente, no âmbito simbólico, a ideia de uma Roma inexpugnável. Mas daí a situar acontecimentos como estes na centralidade de um processo que por suposto teria conduzido abruptamente ao desaparecimento do mundo romano vai uma distância maior, e, em vista de um posicionamento crítico em relação à centralidade dos acontecimentos militares que teriam promovido todo um fim de uma época, surgiram concomitantemente novas interpretações, conforme veremos mais adiante. Por ora, vale lembrar ainda que mesmo a leitura do assassinato do Império Romano permite-se a examinar este que seria o fatídico momento ou o processo do assassinato, se assim podemos dizer, de modo bem mais complexo, e neste caso o acontecimento das invasões bárbaras pode ser lido não necessariamente como um saque em destaque ou uma invasão específica, mas sim como todo um conjunto de acontecimentos relacionados às invasões ou migrações germânicas. Neste sentido, fariam parte de um mesmo acontecimento-pacote, entre outros itens, os confrontos que se dão entre povos germânicos e romanos a partir do século III d.C., bem como eventos mais específicos, como o facto de que os godos já tinham aniquilado legiões romanas em Adrianópolis em 378 d.C., os saques visigodo de 410 d.C.. e vândalo de 455 d.C., fechando-se o pacote, finalmente, com a deposição de Rómulo Augusto em 476 d.C. Estes, naturalmente, são apenas alguns exemplos, e o acontecimento-pacote ao qual nos referimos engloba certamente muito mais eventos, alguns que possivelmente sequer passaram à história registada, mas que devem ter trazido a sua contribuição atomizada para o resultado geral que em um tempo relativamente curto mudou a face da história do mundo antigo». In José D’Assunção Barros, Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN 978-853-264-454-1.

Cortesia EVozes/JDACT