quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

1Q84. Haruki Murakami. «Elas aguardavam em silêncio uma oportunidade que jamais teriam. Aomame contraiu um pouco o queixo, mordeu o lábio inferior e, através das lentes verde-escuras dos óculos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As únicas ocasiões em que ela se deixava ficar desse jeito era quando estava sozinha ou precisava afugentar algum homem inconveniente. Ao chegar no trecho de acostamento, Aomame olhou ao redor procurando a escada. Logo a encontrou. Assim como o motorista a precavera, logo na entrada havia um portão trancado e uma cerca de ferro da altura da cintura. Pular a cerca de minissaia era um pouco inconveniente, mas, desde que não se importasse com os olhares alheios, não era tão difícil. Sem titubear, tirou os sapatos e os guardou dentro da bolsa. Andar descalça certamente estragaria as suas meias finas, mas isso era o menos, depois poderia comprar outras. As pessoas, em silêncio, observaram Aomame tirar os sapatos e, em seguida, o casaco. Da janela aberta de um Toyota Celica preto, parado bem à sua frente, a voz aguda de Michael Jackson soava como música de fundo: Billie Jean. Ela se imaginou num palco de striptease. Tudo bem. Olhem à vontade. Vocês devem estar entediados com esse congestionamento, não é? Mas, senhoras e senhores, saibam que não vou tirar mais nada. Por hoje, somente os sapatos e o casaco. Sinto muito, pensou. Aomame colocou a bolsa a tiracolo para evitar que caísse. O novíssimo Toyota Crown Royal Saloon em que ela estivera momentos antes permanecia a uma certa distância. Com o reflexo da luz do entardecer, o para-brisa reluzia ofuscante como um espelho, impossibilitando-a de ver o rosto do motorista. No entanto, ela tinha certeza de que ele a observava.
Não se deixe enganar pelas aparências. A realidade é sempre única. Aomame inspirou e expirou o ar profundamente. E, ao som de Billie Jean, pulou a cerca de ferro. A minissaia subiu quase até a cintura. E eu com isso, pensou. Se querem ver, vejam à vontade. Isso não significa que conseguirão ver quem eu sou. Além disso, as suas belas pernas esguias eram a parte do seu corpo de que mais se orgulhava. Assim que pulou a cerca, Aomame ajeitou a minissaia, bateu as mãos para limpar a poeira, vestiu novamente o casaco e ajeitou a bolsa. Por fim, apertou a ponte dos óculos de sol contra a base do nariz. A escada de emergência estava diante dos seus olhos. Era de ferro e pintada de cinza. Uma escada que atendia às características de simplicidade e funcionalidade. Não era uma escada apropriada para uma mulher descalça, de meia-calça fina e minissaia. Junko Shimada certamente não havia desenhado aquele conjunto de blazer e minissaia imaginando que seria usado nas escadas de emergência de uma via rápida. Um caminhão de grande porte passou do outro lado da pista fazendo balançar a escada, e o vento assobiava ao passar por entre os vãos da armação de ferro. Enfim, a escada estava diante dos seus olhos. Agora era só uma questão de descê-la.
Porém, antes de descer, Aomame virou-se para dar um último olhar na interminável fila de carros, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, com a postura de quem acabou de proferir uma palestra e aguardava em pé, no palco, as perguntas da plateia. Os carros continuavam na mesma posição como que estacionados. As pessoas, confinadas ali e sem terem o que fazer, apenas a observavam, curiosas, possivelmente indagando o que aquela garota afinal estaria fazendo. Do outro lado da cerca, olhares que mesclavam curiosidade, desinteresse, inveja e desprezo convergiam na sua direcção. Os sentimentos dessas pessoas oscilavam como uma balança instável, impossibilitados de pender para um único lado. Um silêncio pesaroso pairava no ar. Ninguém ergueu o braço para fazer perguntas (e, mesmo que alguém as fizesse, Aomame não tinha intenção de respondê-las). Elas aguardavam em silêncio uma oportunidade que jamais teriam. Aomame contraiu um pouco o queixo, mordeu o lábio inferior e, através das lentes verde-escuras dos óculos, lançou um rápido olhar ao redor. Com certeza eles nem imaginam quem sou, para onde vou e o que pretendo fazer, pensou ela, sem mover os lábios. Estão presos aqui, impossibilitados de ir para qualquer lugar. Não podem avançar nem sequer voltar atrás. Mas eu não. Tenho um trabalho a fazer. Uma missão a cumprir. Por isso, peço licença a todos para seguir em frente. Por fim, sua vontade era de fechar a cara para os que ali estavam, mas tentou controlar o ímpeto. Não tinha tempo a perder. E, uma vez de cara fechada, demorava muito para que voltasse ao normal. Aomame ficou de costas para os espectadores silenciosos e, sentindo a rugosidade e a frieza do ferro na planta dos pés, começou a descer as escadas de emergência com passos cautelosos. Os ventos gelados do início de Abril balançavam os seus cabelos e, de vez em quando, deixavam à mostra a sua orelha esquerda assimétrica». In Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-053-4.

Cortesia de CasadasLetras/JDACT