domingo, 20 de janeiro de 2019

A Paz de Zamora. 1143. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «O sinal da existência de um amor incondicional é o terror que nos assalta ao imaginarmos a morte do objecto desse amor. Certas noites, por exemplo, pensava que a minha Maria ia morrer»

jdact

A Paz de Zamora. Coimbra 1143
Rio Arade. Agosto de 1143
«(…) O almocreve só reapareceu quando eu, o príncipe e Chamoa estávamos já a bordo do barco. Quando lhe perguntei onde havia estado, Mem observou Chamoa, que, envergonhada, baixou os olhos. Atento e desconfiado, Afonso Henriques avisou, numa voz dura: os soldados de Ibn Qasi viram-vos a tomar banho. Aos três... Mem aguentou o olhar dele e ripostou: estava a guardá-las. O príncipe de Portugal semicerrou as pálpebras. De quê?
O almocreve, calmo e tranquilo, contou o que vira nas dunas. Seriam ladrões?, perguntei. Mem não sabia, tinham fugido, mas Afonso Henriques encolheu os ombros, dizendo que certamente eram pescadores. Tinham alfanges. Pareciam feddayins, contrariou o almocreve. O príncipe franziu a testa e questionou-o: e, para as defender melhor, haveis tomado banho com elas? Irritada, Chamoa interpôs-se na conversa, lembrando que, se o assunto era a infidelidade, o príncipe levava a palma, fora ele a chamar Elvira Gualter para Coimbra e a decidir casar com uma princesa da Sabóia. Eu é que sou duvidosa?, provocou, franzindo as sobrancelhas. Num ápice, o príncipe fugiu daquele caminho perigoso e logo se lamentou por a aliança agora forjada com Ibn Qasi ser tão tardia. Teria mesmo de ir a Zamora submeter-se a Afonso VII. Lisboa terá de esperar uns anos... Sentado na amurada do barco, reparei que Mem parecia não o ouvir. Permanecia preocupado, por isso lhe perguntei: que tendes? Então, o almocreve revelou-nos o que o atormentava e a decisão que já tomara. Como sempre, o alvo dos seus pensamentos era Zaida.
Este ligeiramente fútil episódio, passado naquela praia, pode parecer insignificante numa narrativa épica sobre o nascimento do reino de Portugal. Mas não é, pois demonstra a tolice implícita de Chamoa, que apenas desejava ferir Afonso Henriques no seu orgulho de macho, sem ter a noção de que, se revelasse o segredo perigoso que conhecia, poderia obter ganhos bem mais duradouros. Muito vivaça no que toca a homens, a minha cunhada apresentava uma inteligência política mais limitada. Ou isso, ou foi o ciúme que a toldou. Às vezes,meus queridos filhos e netos, julgamos que as pessoas são pouco espertas, mas quando as examinamos melhor verificamos que são apenas ciumentas e, por causa disso, tolas e irrazoáveis.

Silves, Agosto de 1143
O sinal da existência de um amor incondicional é o terror que nos assalta ao imaginarmos a morte do objecto desse amor. Certas noites, por exemplo, pensava que a minha Maria ia morrer. Sofria em silêncio e dava voltas na cama, assustado. Quando me acalmava, retirava desse sobressalto uma bonita conclusão: amava Maria. Temer a morte de quem amamos é um sinal da profundidade do sentimento que nos habita o coração. Por isso, compreendo bem o que Zaida sentiu naquela noite.
A pequena Maryam, já com dois anos, corria aos pulinhos nos jardins do palácio de Silves, perseguida pela atenta mãe, receosa de que a filha caísse. A menina adorava aquelas corridinhas e costumava desequilibrar-se, mas desta vez não tropeçou nas próprias pernas ou nas lajes irregulares, antes se aninhou nos braços do pai, Ibn Qasi. Coberto por um manto castanho e de alfange à cintura, depois de pegar na fllha ao colo, o sufi enfrentou a pergunta inquieta de Zaida: onde ides assim vestido? Ibn Qasi procurou tranquilizá-la, mas, por mais que alegasse tratar-se apenas de uma visita de rotina a Mértola, ela temia algo mais grave e ouviu a voz da mãe, Zulmira.
Filha, Ibn Wasir revoltou-se e ele não vos quer dizer.
O emir de Silves não a desejava preocupada, mas a orgulhosa Zaida relembrou que fora educada por sua mãe para regressar ao trono de Córdova. Não vos deixo partir sem saber o que se passa, exigiu. Ibn Qasi suspirou, não valia a pena ludibriá-la. Em Mértola, os populares repudiaram o sufismo e Ibn Wasir receava não conseguir suster as perturbações. Além disso, o alcaide queria planear o futuro, pois também temia Ismar. É uma cilada!, exclamou Zaida. Irei convosco!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
                                                          
Cortesia da CasadasLetras/JDACT