quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

A Brisa do Oriente. Paloma Sanchez-Garnica. «Porém, o ancião mal reagiu, encolhendo-se como se quisesse desaparecer. Dizei-me onde estão as relíquias que guardais ou juro-vos, velho infiel, que sereis castigado com a morte!»

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Constantinopla. Abril do ano de 1204
«(…) O  mosteiro do Cristo Pantocrator, situado no centro da cidade, era o local onde muitas das relíquias provenientes de mosteiros vizinhos tinham sido depositadas para que ficassem guardadas num lugar seguro, fora do alcance dos infiéis que acossavam aquelas terras como uma ameaça constante. O abade Martín perguntou a vários homens onde se encontrava. Bernardo e eu seguíamo-lo em silêncio, como se fôssemos a sua sombra. Quando chegámos ao mosteiro, verificámos que as portas tinham sido arrombadas e que os latinos corriam e saltavam de um lado para o outro com peças de ouro, pedras preciosas e outros objectos sagrados num estado de embriaguez malvada que lhes alterava a consciência. O abade não olhou para eles e, para meu grande desconcerto, em nenhum momento os repreendeu pela sua atitude. Seguiu caminho até à igreja, guardado pelos nossos passos temerosos. Quando chegou à sacristia, parou de repente. No centro daquele espaço vimos um ancião, de barba comprida e com um ar abatido. Estava de pé, imóvel. Virou-se para nós e olhou-nos sem surpresa, como se esperasse a nossa chegada. Tinha os olhos pequenos e escuros, e alguns cabelos brancos tentavam desesperadamente manter-se pegados ao seu crânio brilhante. Manteve as mãos enfiadas nas mangas. O abade aproximou-se dele devagar, com um olhar desafiante. A sua estatura e corpulência obrigaram o ancião a olhar para cima. Apercebi-me, então, de que o corpo seco daquele homem tremia sob o manto escuro do seu hábito desfiado pelo tempo. Onde guardais as relíquias?, rugiu o abade, engrossando a voz.
Porém, o ancião mal reagiu, encolhendo-se como se quisesse desaparecer. Dizei-me onde estão as relíquias que guardais ou juro-vos, velho infiel, que sereis castigado com a morte! O homem descerrou os lábios e murmurou algo num latim entrecortado, que não fui capaz de compreender. Depois, retirou a mão da manga e apontou para um baú enorme que havia ao fundo da sacristia. O abade passou diante dele com tamanho ímpeto que quase o derrubou. Fui eu quem o susteve e os seus olhos assustados e cansados ficaram-me gravados na retina. O meu coração batia com força, embargado pela sensação de culpa que ardia na minha consciência ferida. O baú estava fechado à chave e o abade virou-se na nossa direcção.
As chaves?, atirou, olhando para o ancião, mas este respondeu-lhe com um encolher de ombros. Umberto, Bernardo, vinde aqui e abri isto. Temos de ver o que é que está aqui escondido antes que aqueles energúmenos o descubram. Apenas lhes interessam o ouro e as pedras preciosas, mas as relíquias pertencem à Igreja!
Preparámo-nos para arrombar a fechadura tosca que impedia a abertura do baú, servindo-nos de um candelabro de prata como alavanca. As minhas mãos trémulas moviam-se atabalhoadas, pois fui tomado por uma sensação de falta de ar ao compreender que eu próprio ia participar naquele saque espantoso. Depois de várias tentativas, perante o ar impaciente do abade e o olhar afastado do ancião, a fechadura saltou e pudemos abrir a tampa de madeira. No interior, encontrámos vestes ricas, dedicadas à liturgia, as quais foram revoltas sem nenhum cuidado pelas mãos nervosas do abade até estas descobrirem, quase no fundo do baú, uma caixa de prata com motivos de prata magnificamente esculpidos. Era uma peça muito bonita, feita para guardar alguma coisa valiosa. O abade pegou nela e voltou-se para o ancião, com um ar solene. O que está aqui dentro?
O ancião aproximou-se e respondeu-lhe: é o dedo do apóstolo Tomé Dídimo..., disse, olhando-o de soslaio, com uma expressão que me pareceu de um certo cinismo. Faz milagres extraordinários a quem a ele reza com fé cega..., mas só aos que sentem verdadeira fé... A voz do velho monge era rouca e cavernosa, e falava num latim que me custava a compreender. Vamos levá-lo!, disse o abade, em tom firme. Aqui não está seguro. Poderia perder-se... O meu coração começou a bater com tanta força que pensei que ia desmaiar. Mas padre..., atrevi-me a dizer, numa tentativa vã de corrigir a sua conduta e a minha própria consciência, é um sacrilégio; não podemos... As palavras saíram-me desajeitadas dos lábios. Balbuciando, olhei para o abade e para o cofre, que ele segurava como quem tinha nas mãos um tesouro sagrado. Tens razão, Umberto, é um sacrilégio, mas cometemo-lo por uma causa santa, respondeu-me, virando-se para mim com uma atitude condescendente. Se deixássemos aqui esta peça, os infiéis poderiam destruí-la ou fazê-la desaparecer..., para não dizer que poderia ir parar às mãos destes cavaleiros latinos enlouquecidos, que a venderiam a quem mais lhes pagasse, sem pensarem, em momento algum, no valor sagrado que tem para a nossa Igreja». In Paloma Shanchez-Garnica, A Brisa do Oriente, 2009, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2012, ISBN 978-989-637-411-2.
                   
Cortesia SEmergência/JDACT