domingo, 20 de janeiro de 2019

O Massacre dos Templários. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «… o Rato não queria reviver o abismo onde caíra um dia, e foi o Peida Gorda quem o defendeu: o nosso monge já pagou pelos seus pecados. Para evitar um tema tão melindroso…»

jdact

Guimarães e Coimbra, Agosto de 1144
«(…) Sempre fora amigo dela e queria continuar a sê-lo, sobretudo naquelas horas más, enquanto esperavam que os respectivos amados se convencessem do erro cometido. Não havia ninguém mais leal a Zaida do que Mem, nem ninguém mais leal a Afonso Henriques do que Chamoa. Se na fidelidade nenhum era de fiar, na lealdade não havia quem os ultrapassasse.
Ao cair da noite, encontraram os templários. O grupo, formado por cerca de cinquenta homens, tinha à cabeça o mestre Jean Raymond, que mandou parar a comitiva ao vê-los. Que desejais?, perguntou o francês, desconfiado. Enquanto Mem explicava ao que vinham, aproximaram-se da carroça um baixote e um gordo, que saudaram efusivamente o almocreve. Eram o Rato e o Peida Gorda, que recordaram lutas antigas, quando Soure estava em ruínas e Mem os ajudara a fugir de Abu Zhakaria. Foi quase há vinte anos!, exclamou o Rato, agora um cavaleiro templário, coberto por um manto branco, onde se via, cosida, a cruz encarnada da Ordem do Templo. Estamos velhos e acabados, resmungou o Peida Gorda, como quem sentia o contrário do que dizia. Quando Chamoa falou, o Rato empalideceu. Fora por saber que Ramiro se dera à minha cunhada que ele enlouquecera de ciúmes e atacara o colega templário. Vim ver o túmulo de Ramiro, informou ela.
Naturalmente, o Rato não queria reviver o abismo onde caíra um dia, e foi o Peida Gorda quem o defendeu: o nosso monge já pagou pelos seus pecados. Para evitar um tema tão melindroso, Jean Raymond perguntou porque desejava Chamoa falar com Martinho Soure, mas ela foi vaga. Era uma conversa confidencial, a mando de Afonso Henriques. Uma resposta que só aumentou as dúvidas do mestre. Segundo sei, haveis sido afastada da corte, disse este. A minha cunhada alegou que o seu estado era provisório, até que fossem esclarecidos uns detalhes, para os quais
era necessária a palavra de Martinho Soure. Então, o mestre dos templários mandou chamar o pároco, podiam ir conversando enquanto a comitiva prosseguia de regresso a Soure. E foi precisamente no momento em que o prior apareceu a cavalo, que algo de terrível aconteceu, quando o grupo atravessava um pequeno vale, de encostas escurecidas por muitas árvores e uma noite sem lua. Padre Martinho, haveis sido o último confessor do conde Henrique, começara Chamoa. Ele contou-vos algo sobre crianças trocadas... A pergunta da minha cunhada nunca terminou, pois uma flecha espetou-se na madeira da carroça. Mem gritou a Chamoa que se escondesse junto às pipas e às sacas, enquanto uma enorme confusão nascia no vale.
Quem são?, perguntou a minha cunhada, aflita. Talvez fossem os tais grupos de mouros que andavam pela região a levantar desacatos, disse Mem, mas rapidamente mudou de opinião, perante a violência do ataque.
Morte a sorrir, toca a fugir!
Agarrou as rédeas dos jumentos e gritou-lhes. A carroça começou a mover-se e Chamoa viu Martinho Soure dobrado, protegendo-se com o cavalo. Gritou ao pároco para saltar para a carroça, o que este fez. Baixai a cabeça!, berrou-lhes Mem. Perto deles e ainda a cavalo, mantinham-se o Rato e o Peida Gorda, bem como mestre Raymond. O Rato pediu a Mem que ripostasse, pois era muito bom com o arco, mas o almocreve não conseguia ver bem. Só dois ou três archotes, iluminavam mal a estrada.
Sem nenhuma luz, valha-me Jesus!
De súbito, Mem escutou um tropel na estrada, à sua frente. Alguém vinha na direcção deles em grande cavalgada e, por um instante, convenceu-se de que eram cristãos, vindos de Coimbra para destroçar o bando de canalhas mouros! Puro engano. Quando surgiram os primeiros soldados, traziam turbantes na cabeça, alfanges e lanças pequenas, e o coração de Mem parou quando, instantes depois, a cabeça do bondoso Peida Gorda saltou, decepada com mestria.
Golpe certeiro, bom cavaleiro...
Só conhecia um homem que cortava pescoços assim: Abu Zhakaria! O governador de Santarém apareceu à frente dele e, instantes depois, também o Rato tombou, degolado. O último a morrer foi mestre Jean Raymond, o que provocou forte algazarra entre os sarracenos, uma horda ululante, à qual Mem ouviu sobrepor-se uma voz imperativa. - Poupai o pároco, poupai o pároco! A dez passos, Mem viu surgir um outro vulto. Ismar, o príncipe de Córdova, o marido de Raimunda, apontava o dedo para a carroça deles!
Foi assim, queridos filhos e netos, que aqueles dois célebres muçulmanos, Ismar e Abu Zhakaria, se cruzaram em definitivo com a intriga de Compostela! Cumprindo o prometido ao imperador Afonso VII, o príncipe de Córdova atacou Soure e raptou o pároco Martinho, o último confessor do conde Henrique, o único que sabia os segredos deste. Uma estúpic1a e infantil zanga entre Chamoa e o meu melhor amigo, talvez a vigésima quezília de dois enamorados, tantas foram elas, fizera o nosso mundo saltar dos eixos e enrodilhar-se no vasto universo muçulmano». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT