sábado, 19 de janeiro de 2019

A Paz de Zamora. 1143. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Só quando Mem me descreveu o acontecido é que compreendi as suas razões. O almocreve comera fora da tenda e decidira caminhar pelas redondezas…»

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A Paz de Zamora. Coimbra 1143
Rio Arade. Agosto de 1143
«(…) E que novas tendes de África?, perguntou Afonso Henriques. O sufi que reinava na taifa de Mértola confirmou que almorávidas e almóadas bulhavam em permanência, prevendo que os últimos vencessem a contenda. Já Ismar, apesar do golpe do imperador, mantinha-se como o mais poderoso rei muçulmano da Andaluzia e patrocinava uma conspiração contra Ibn Qasi. Temos então um inimigo comum, concluiu o príncipe de Portugal. O marido de Zaida incomodou-se com aquelas palavras e só depois de perceber que os criados não as haviam ouvido é que murmurou: alianças com cristãos são mal vistas pelos muçulmanos... Em voz intencionalmente baixa, revelou desejo de atacar Beja e Évora, expandindo a sua taifa para norte. Apoderando-se dessas ciclades, talava a estrada de Badajoz para Lisboa, impedindo Ismar de defender esta última povoação. Todo o além-Tejo passaria então a ser dominado por ele, que não se julgava, porém, capaz de conquistas acima do grande rio. Nos territórios cristãos..., murmurou Afonso Henriques. De repente, dei-me conta de que o inteligente esposo de Zaida nos fizera uma proposta concreta. O além-Tejo ficaria para ele e as cidades acima do Tejo, como Santarém e Lisboa, seriam para nós. Contudo, Afonso Henriques recordou que quaisquer ataques futuros a Santarém e Lisboa teriam de ser bem preparados, pois não desejava um segundo fiasco. Precisamos de dois anos, pelo menos, avisou.
Ibn Qasi murmurou que, no entretanto, a sua vida não seria fácil, pois Ismar aproveitaria para o tentar derrubar. Como?, perguntei. O sufi desconfiava do alcaide que deixara em Mértola, chamado Ibn Wasir, o que levou uma desagradada Zaida a exclamar, mexendo-se no seu almofadão: é víbora, Ismar comprou-o! Ibn Qasi adiantou que na capital da sua taifa muita gente não defendia a leitura do Islão que ele professava, o que diminuía o seu apoio. Ismar e Ibn Wasir usavam esse argumento contra ele, tinha de ser paciente. Sempre fora assim no passado turbulento da Andaluzia, as guerras entre os da mesma fé podiam ser mais destrutivas do que as travadas entre cristãos e muçulmanos. Ibn Qasi recordou vários episódios do passado, mas, como a sua narrativa se prolongou excessivamente, Zaida e Chamoa decidiram ir passear pela praia, entediadas com tantas memórias bélicas.
Só quando Mem me descreveu o acontecido é que compreendi as suas razões. O almocreve comera fora da tenda e decidira caminhar pelas redondezas, sem destino aparente, pois tinha as ideias baralhadas. Zaida estava casada com Ibn Qasi, mas mesmo assim correra a abraçá-lo fortemente, deixando-o muito agitado.
Peitinho amassado, menino esperançado...
Mem apreciava a companhia generosa das três irmãs moçárabes, Ália, Élia e Ília, com quem convivia em Coimbra, mas não as amava como a Zaida. Hoje tivera a absoluta certeza disso. O seu coração pulara, agitado, já cheio de infundadas expectativas, quando a ouvira dizer Mem querido.
Ouvida a senha, mexe-se a entranha.
Já em cima das dunas, estacou, surpreendido. A duzentos passos, cinco homens, ajoelhados, observavam a praia. Pareciam mendigos, pois usavam roupas pobres, mas o almocreve viu espadas a brilharem nas cinturas deles. Avançou, intrigado, só que os estranhos pressentiram-no, desaparecendo pelas dunas». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
                     
Cortesia da CasadasLetras/JDACT