segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «A razão aparente daquela presença era que o grupo figurava inteiramente realizado em pasta de vidro, porém a sua razão emblemática devia ser bem outra... Procurava lembrar-me onde já havia contemplado aquela imagem»

jdact e wikipedia

Keter
«(…) E que era aquele aparelho para estudar a fermentação pútrida, de 1781, bela alusão aos putrefactos bastardos do Demiurgo? Uma sequência de tubos vítreos que saindo de um útero em forma de bola passam por esferas e condutos, sustentados por forquilhas, para dentro de duas ampolas, e transmitem uma essência qualquer de uma para outra através de serpentinas que desembocam no vácuo... Fermentação pútrida? Balneum Mariae, sublimação do hidrargírio, mysterium conjunctionis, produção do Elixir!
E a máquina para estudar a fermentação (de novo) do vinho? Um conjunto de arcos de cristal, que vai de atanor a atanor, saindo de um alambique para terminar em outro? E aqueles óculos minúsculos, a diminuta clepsidra e o reduzido electroscópio, a lente, o bisturi de laboratório que lembra um dos caracteres cuneiformes, a espátula com alavanca de expulsão, a lâmina de vidro, o cadinho de terra refractária de três centímetros para produzir um homúnculo do tamanho de um gnomo, útero infinitesimal para clonações, os estojos de acaju cheios de pacotinhos brancos, iguais aos papelotes dos boticários do interior, envoltos em pergaminhos vincados de caracteres intraduzíveis, como espécimes mineralógicos (assim se diz), mas na verdade fragmentos da Síndrome de Basilides, relicários com o prepúcio de Hermes Trismegisto, e o martelo de tapeceiro comprido e fino para bater o início de um brevíssimo dia de juízo, uma hasta de quintessências a realizar-se entre o Pequeno Povo dos Elfos de Avalon, o inefável e miniatural aparelho para analisar a combustão dos óleos, os glóbulos de vidro dispostos em pétalas de quadrifólios, e outros quadrifólios coligados uns aos outros por tubos de ouro, e os quadrifólios a outros tubos de cristal, e estes a um cilindro de cobre, e ainda, a prumo em baixo, um outro cilindro de ouro e vidro, e mais tubos, descendentes, apêndices pênseis, testículos, glândulas, excrescências, cristas... É esta a química moderna? E por causa disto acontecia guilhotinarem o autor, quando se sabe que nada se cria e tudo se transforma? Ou o matavam para fazê-lo calar sobre aquilo que fingia revelar, como Newton, que estendeu-nos tantas asas, mas que continuava a meditar sobre a Cabala e as essências qualitativas?
A sala Lavoisier do Conservatoire é uma confissão, uma mensagem cifrada, um epitome do próprio conservatório, irrisão do orgulho do forte pensamento da razão moderna, sussurro de outros mistérios. Jacopo Belbo tinha razão, a Razão estava errada. Devia apressar-me, iminente a hora. Lá estavam o metro, o quilo, as medidas, falsas garantias de garantia. Eu aprendera com Aglié que o segredo das Pirâmides é revelado não pelos cálculos em metros, mas pelos cúbitos antigos. Eis as máquinas aritméticas, triunfo fictício do quantitativo, na verdade promessa das qualidades ocultas dos números, retorno à origem do Notarikon dos rabinos em fuga pelas landes da Europa. Astronomia, relógios, autómatos, gritos e sussurros a entreter-me em meio àquelas novas revelações. Prestes estaria penetrando no cerne de uma mensagem secreta em forma de Theatrum racionalista, exploraria depois, entre a hora de fechar e a meia-noite, aqueles objectos que à luz oblíqua do ocaso assumiriam o seu verdadeiro vulto, figuras, e não instrumentos.
Em cima, atravessando as salas dos ofícios, da energia, da electricidade, não encontrei vitrina em que pudesse esconder-me. Agora que pouco a pouco ia descobrindo ou intuindo o sentido daquelas sequências, vi-me tomado de ânsia por não haver tempo para encontrar um esconderijo de onde pudesse presenciar a revelação nocturna da sua razão secreta. Movia-me agora como um homem perseguido, pelo relógio e pelo avanço hórrido do número. A terra girava inexorável, a hora chegava, em breve estariam à minha procura. Foi aí que, atravessando a galeria de instrumentos eléctricos, cheguei à saleta dos vidros. Que razão ilógica havia disposto para que houvesse, além dos aparelhos mais avançados e custosos do engenho moderno, uma zona reservada a práticas conhecidas pelos fenícios, milénios atrás? Era uma sala de colecções, onde se alternavam as porcelanas chinesas e os vasos andróginos de Lalique, cerâmica, maiólicas, faianças e muranos, e ao fundo, num escrínio enorme, em tamanho natural e a três dimensões, um leão que esmaga uma serpente. A razão aparente daquela presença era que o grupo figurava inteiramente realizado em pasta de vidro, porém a sua razão emblemática devia ser bem outra... Procurava lembrar-me onde já havia contemplado aquela imagem. Logo recordei. O Demiurgo, odioso produto da Sophia, o primeiro arconte, Ildabaoth, responsável pelo mundo e sua radical imperfeição, tinha a forma de uma serpente e um leão, e os seus olhos emitiam luz de fogo. Era bem possível que o Conservatoire inteiro fosse uma imagem do processo infame pelo qual, da plenitude do princípio primitivo, o Pêndulo, e do fulgor do Pleroma, de éon em éon, o Ogdóade se desprende e alcança o reino cósmico, onde reina o Mal. Mas agora aquela serpente, e aquele leão, estavam-me dizendo que minha viagem iniciática, pobre de mim, à rebours, havia então terminado, e dentro em pouco eu iria rever o mundo, não como devesse ser, mas como de facto é. Com efeito, notei que no ângulo direito, contra uma janela, estava a guarita do Periscópio». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea (Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
                    
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT