domingo, 28 de novembro de 2021

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Já a bordo, da amurada olho a multidão que acena com lenços. Boa viagem! Que Deus vos acompanhe! Tende cuidado convosco!, é a voz forte e timbrada do padre Bonifácio que vem lá de baixo…»

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Roma... Veneza... Trento

«(…) Dom frei João Soares entregava-me, para a guardiania da Terra Santa, trinta moedas de ouro em memória dos trinta dinheiros de Judas. Em breve farei também minha peregrinação e visitar-vos-ei em Jerusalém. O arcebispo de Braga, dom frei Bartolomeu dos Mártires, também estava, ao pé de frei Bonifácio de Aragusa. Que também ele partia, dizia-me abraçando-me, mas em sentido contrário, caminho da sua diocese. O seu rebanho, as suas ovelhas, compreendia? Já a bordo, da amurada olho a multidão que acena com lenços. Boa viagem! Que Deus vos acompanhe! Tende cuidado convosco!, é a voz forte e timbrada do padre Bonifácio que vem lá de baixo, do cais. Entre as muitas cabeças, vislumbro o olhar curioso de Joseph, é dia de Santa Bárbara, quatro de Dezembro de 1562, uma sexta-feira ao romper da alva.

 

A Tempestade

Cá vamos!, murmurou emocionado frei Zedilho, o rosário de grandes camândulas entre os dedos. Estávamos debruçados na amurada apinhada de passageiros e rodeados dos seis irmãos franciscanos que se haviam atrasado e tinham embarcado connosco. A terra começava a alongar-se, a fugir, a perder a nitidez de cores e formas, a tornar-se uma diluída mancha inflada. Era todavia a paisagem interior que me ocupava. Ao partir, em vez de sentir saudades de uma terra que não era a minha e que se afastava e esbatia nas brumas do amanhecer, apurava os olhos da esperança na expectativa de ver aproximar-se finalmente, vindo dos nevoeiros dos caminhos desconhecidos, esse algo indefinido de que eu tinha uma necessidade esfomeada desde que me conhecia. Cá vamos!, sussurrei também. Soprava um próspero vento de poente e a nau, grande e formosa, chamada Sanuda, sulcava as ondas com rapidez e leveza. Assim passamos a Istria quase toda, mas quando começamos a costear a Dalmácia acudiu-nos vento do sudoeste, tão áspero e forte que fomos constrangidos a procurar abrigo. Fizemo-lo num lugar de nome Cabeça de São Pedro, do lado da Istria, Albânia, Grécia. No Adriático são pouquíssimos, no espaço de duzentas léguas, os portos que se podem tomar da parte da Itália, apenas Ancona, Brundísio e Otranto oferecem segurança, mas ainda assim as naus só os buscam quando têm neles que negociar. O vento ia em crescimento, tornava-se ciclónico quando a noite caiu. Embrulhado na minha manta, sentia-o zunir pelas frinchas, assobiar nas enxárcias. Zimbrava o barco da popa à proa, rangendo e guinchando. Principiei a sentir-me agoniado. Levantei-me, saí do meu camarote aos apalpões, tropeçando aqui e ali nos colchões dos companheiros de viagem que dormiam na coberta. Subi as escadas que levavam ao convés: precisava de alijar carga. Cá fora o vento fustigava e era necessário arrimar-me bem às paredes, ao que encontrava, para não ser arrastado. Estava escuro, mas a espaços as nuvens que doidejavam no céu numa correria infrene deixavam lampejar uns clarões de luar. O vomito assomava-me à garganta, cheguei-me à amurada, tremendo e cheio de suores frios, ourado. Assim que lancei, permaneci uns momentos muito quieto, ofegante. Perto de mim senti um arfar desassossegado, angustioso. Pensei vagamente que alguém, como eu, estaria agoniado. Pouco e pouco o meu corpo recuperava o equilíbrio, a respiração tornou-se normal e calma, o mal-estar desaparecia. Soergui-me apurando o ouvido. Aquele arfar continuava, agora mais apressado, mas de súbito dei conta de que havia dois ritmos e timbres diferentes nesse respirar e suspirar doloroso.

É mais que uma pessoa que está mal disposta, pensei eu, procurando ver no escuro. Por instantes o luar apareceu e eu pude, num relance, distinguir dois vultos que junto de um rolo de cordas se enlaçavam. A escuridão recaiu e os gemidos aumentavam confundindo-se com a ventania. Tolerante, por experiência, com aqueles que se amam, dispunha-me a retirar-me quando um clarão mais forte tornou nítidas as formas: um jovem estava de borco sobre as cordas e um homem abraçando-o pelas costas sodomizava-o!... Corri para as escadas e, como pude, meti-me na cama a tentar adormecer. Onde estavam as amuradas para o vomito da alma?...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

 A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,