quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Quem dera ser tão má cumo dizem que sou. Irmã Margarida não estava a gostar do rumo da conversa, mas não produziu qualquer comentário. Irmã Alice encolheu os ombros e perguntou: Tens família em Lisvoa?»

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«(…) Tenho de me sentar, avisou a freira mais velha. Estou cum munta sede. Sentaram-se no chão, lado a lado. Uma mulher do grupo viu-as naquele estado e ordenou a uma menina que lhes desse um gole de água. A menina aproximou-se, com um pequeno jarro, e ofereceu-o à freira mais velha, que bebeu por ele. Depois, a menina passou o jarro a irmã Margarida. Obrigado, disse ela, depois de beber. A menina sorriu e a seguir olhou para a freira mais velha, que não lhe sorriu. A mulher que enviara a menina olhou também para a freira mais velha e ficou subitamente séria, como que incomodada com o olhar que recebera de volta. Chamou a menina para perto dela, e depois comentou qualquer coisa com um homem. Este examinou as duas freiras, e irmã Margarida não gostou do olhar que ele lhes deitou. Ia levantar-se, mas nesse momento Lisboa foi vítima de um novo abalo de terra, o terceiro, o mais curto, e a vontade do homem foi imediatamente esquecida, pois todos gritaram na praça e o caos tomou conta do local. Quando a agitação terminou, as duas freiras já se tinham afastado e já ninguém se lembrava delas. Atravessaram a praça, a caminho da baixa da cidade, na direcção do rio, para ficarem cada vez mais longe do Palácio da Inquisição (maldita) e do Convento de São Domingos. Mas a freira mais velha tinha muita dificuldade de andar, e sentaram-se outra vez. Então, irmã Margarida reparou que a outra trazia um casaco na mão, mas não se dera conta a quem ela o roubara nem quando. Será que estou a ser injusto com irmã Alice, traçando dela um desenho desfavorável? Não tenho nada contra mulheres que gostam de outras mulheres, até me diverti bastante com elas, juntando várias em certas noites na minha cama, para folgar. Mas esta era uma situação diferente: irmã Margarida provocava-me um sentimento forte, e ao ouvir estas histórias dela, fossem os seus companheiros homens ou mulheres, sentia de imediato uma picada forte no coração, o ciúme a castigar-me, e não conseguia ser benévolo na minha opinião sobre essas pessoas, como era o caso do inglês, ou desta freira que tentou seduzir a rapariga.

Passados alguns minutos em silêncio, irmã Alice perguntou: Porque disse o cunfessor que merecias a liverdade? Como a rapariga não se dignou a responder, a outra insistiu: Dizem que tu lebaste o Demónio para o conbento, que se oubiam os gritos dele lá dentro... Irmã Margarida defendeu-se: O que dizem nem sempre é verdade. A freira mais velha ficou calada uns segundos e depois aprovou: Tens razão. De mim, tamvém dizem muita mentira... Quem dera ser tão má cumo dizem que sou. Irmã Margarida não estava a gostar do rumo da conversa, mas não produziu qualquer comentário. Irmã Alice encolheu os ombros e perguntou: Tens família em Lisvoa? Não. Os meus pais morreram. Foi por isso que fui para o convento... A rapariga bonita sentiu uma súbita vontade de chorar. Já ficara sozinha no mundo uma vez, e agora estava de novo na mesma situação. Mas isso, apesar de tudo, era melhor do que morrer queimada.

Bais fugir pra donde?, perguntou a freira mais velha. Não sei. Não tenho família, nem amigos. Saves que, se ficares em Lisvoa, és presa outra bez e matam-te? Sei. Debias fugir prò mar, apanhar um varco para o Vrasil. No meio desta cunfusão, ninguém bai reparar... Curiosa, irmã Margarida perguntou: E onde se apanham esses barcos para o Brasil? Lá em vaixo, no Terreiro do Paço... E tu, vens comigo?, perguntou irmã Margarida. A outra sorriu: Estou belha de mais para uma biagem tão longa. Então o que vais fazer? Se te apanharem, também te prendem outra vez. Ficaram as duas caladas, agora durante longos minutos. Correra mais de uma hora sobre o último abalo e o Rossio enchiase cada vez mais, as pessoas vinham de todos os lados, da Baixa, do Bairro Alto, do Castelo. Surpreendidas, as duas freiras viram reaparecer o profetista. Nervoso, avisou-as: Tá perigoso, tá muito perigoso. Andam à nossa procura. Já conseguiram pegá os outros... Havia outros como nós?, perguntou irmã Alice, curiosa. O profetista informou que mais prisioneiros se tinham evadido.

Das celas do outro lado do Palácio. Mais dji vintji, mas já os pegaram a todos. E já sabem dji nós. O padri os avisou, tá na cara... Irmã Margarida recordou as palavras do seu confessor: os guardas da Inquisição (maldita) iriam andar à procura do profetista e de irmã Alice, casos mais graves, mas ninguém se ia preocupar com ela. Não sabia se tais palavras eram sábias, mas, a dar-lhes validade, se permanecesse junto daqueles dois seria presa fácil. Se sairmos do Rossio, nunca nos vão encontrar, disse». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,