quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Ildefonso Falcones. A Rainha Descalça. «Naqueles dias, a escravidão já quase havia desaparecido de Sevilha: a crise demográfica e económica, a guerra de 1640 com Portugal, o grande provedor de escravos do mercado sevilhano…»

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Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748

«(…) Depois voltavam a cantar e a dançar desenfreadamente, à espera

de que algum de seus deuses os possuísse. Às vezes repetiam e voltavam a deixar o barracão. Não, não gostava, mas tampouco sentia nada; haviam-lhe ido roubando os sentimentos, pedaço a pedaço, desde a primeira noite em que o senhor a forçara. Não haveria transcorrido uma hora quando um daqueles homens voltou e interrompeu seus pensamentos. Queres trabalhar na minha oficina?, perguntou-lhe iluminando-a com uma candeia. Sou oleiro. Que é um oleiro?, perguntou-se Caridad tentando vislumbrá-lo na escuridão. Ela só queria… Tu me darás dinheiro para atravessar a ponte?, inquiriu. O homem percebeu a dúvida no seu rosto. Vem comigo, ordenou-lhe. Isso, sim, ela entendeu: uma ordem, como quando algum negro a segurava pelo braço e a levava para fora do barracão. Seguiu-o em direcção à Cava Vieja. Na altura do castelo da Inquisição (maldita), sem virar-se, o oleiro a interrogou: Fugiste? Sou livre. Às luzes do castelo, Caridad viu que o homem assentia com a cabeça. Tratava-se de uma pequena oficina, com habitação no andar superior, na rua de los Alfareros. Entraram, e o homem lhe indicou um colchão de palha num canto da oficina, junto à lenha e o forno. Caridad se sentou nele. Amanhã começarás. Dorme.

O calor dos rescaldos do forno embalou uma Caridad penetrada pela humidade do Guadalquivir, e ela dormiu. Desde a época muçulmana, Triana era conhecida pelas suas manufacturas de barro cozido, sobretudo pelos azulejos vidrados de cavidade ou relevo, nos quais os mestres expertos afundavam uma corda no barro fresco e conseguiam desenhos magníficos. No entanto, fazia algum tempo que aquela cerâmica artesanal havia degenerado em peças repetitivas sem encanto, ao que se somaram a concorrência da louça de pederneira inglesa e a mudança de gosto das pessoas, que se inclinou para a porcelana oriental. No arrabalde, portanto, o ofício decaía. No dia seguinte, ao amanhecer, Caridad começou a trabalhar junto ao homem da noite, um jovenzinho que devia ser seu filho e um aprendiz que não lhe tirava os olhos de cima. Carregou lenha, transportou argila, varreu mil vezes e ocupou-se das cinzas do forno. Assim começaram a passar os dias. O oleiro, Caridad nunca viu sair uma mulher do andar de cima, visitava-a durante as noites. Tenho de atravessar a ponte para ir à igreja dos Anjos, onde estão os negrinhos, teria querido dizer-lhe numa delas, quando o homem, depois de havê-la possuído, se preparava para ir-se. Em vez disso, limitou-se a balbuciar: E meu dinheiro? Dinheiro! Queres dinheiro? Comes mais do que trabalhas e tens um lugar onde dormir, respondeu-lhe o oleiro. Que mais poderia desejar uma negra como tu? Preferes ficar na rua pedindo esmola como a maioria dos negros livres?

Naqueles dias, a escravidão já quase havia desaparecido de Sevilha: a crise demográfica e económica, a guerra de 1640 com Portugal, o grande provedor de escravos do mercado sevilhano, a peste bubónica de que a cidade padeceu alguns anos depois, que se encarniçou nos negros escravos, junto com as constantes e numerosas manumissões que os piedosos sevilhanos vinham ordenando nos seus testamentos, tiveram como consequência uma significativa diminuição da escravidão. Sevilha perdeu seus escravos ao ritmo da perda do seu poder económico. Comes mais do que trabalhas, ressoava nos ouvidos de Caridad. A cantilena do capataz do senhor José na veiga lhe veio então à lembrança: Não trabalhais o que comeis, recriminava-os antes de soltar o látego nas costas de algum deles. Pouco havia mudado sua vida, de que lhe servia ser livre?» In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

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