segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Fernando Campos. A Casa do Pó. «Fiz ouvidos de mercador à pergunta, pois também a mim me vinham soando supostos escândalos que Sua Reverendíssima andava dando com o elemento feminino…»

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Roma... Veneza... Trento

«(…) Aquele ano partiu a nau dos peregrinos a vinte e tantos de Julho, por alguns impedimentos, entre os quais o principal foi o facto de ter de levar também a família franciscana, que custava a reunir por ser de diversas províncias. Mesmo assim, só partiram desta vez cinquenta e cinco frades. Os restantes não chegaram a tempo e ficariam para uma viagem seguinte. Eu e frei Bonifácio assistimos à partida da nau e em seguida partimos também nós ambos caminho de Trento, onde ficámos por espaço de três meses tratando com o comissário-geral de assuntos importantes relativos aos lugares da Terra Santa e à nossa viagem. Seguimos por Pádua, a das pradarias irrigadas e úberes, onde visitamos a monumental Basílica de Santo António. Pequeno diálogo se travou aqui entre mim e frei Bonifácio, à saída do templo. Depois de nosso padre São Francisco, que era místico e poeta, muito devoto era, dizia frei Bonifácio, deste poverello italiano, primeiro doutor da Igreja da nossa ordem, de portentoso saber, que tinha o dom de aliar ao misticismo a teologia, fazendo a síntese entre a rigidez da escolástica aquiniana e a humanidade franciscana... Dissera poverello italiano?, perguntava eu. António de Pádua... Desculpasse a ignorância o meu bom padre frei Bonifácio..., minha pedra no sapato, ... mas julgava ter ouvido ou lido algures que frei António não era italiano. Não era italiano?!... À teologia e a prodigiosa erudição que tanto tinham assombrado as terras e nações por onde havia pregado aprendera-as ele em Santa Cruz de Coimbra... Coimbra? Não é a terra desse vosso bispo que tanto está a dar que falar, dom frei João Soares

Fiz ouvidos de mercador à pergunta, pois também a mim me vinham soando supostos escândalos que Sua Reverendíssima andava dando com o elemento feminino, e continuei: O misticismo, além de o ter de muito novo recebido de Deus, bebeu-o na orfandade prematura junto da sé de Lisboa e na meditação inspirada diante dos corpos mutilados dos santos mártires de Marrocos. Atónito, frei Bonifácio exclamou: Não me digais, meu querido Pantaleão, que Santo António é um santo português!... Sim, meu mestre, lhe disse eu sorrindo e sem acinte, Santo António de Pádua é Santo António de Lisboa Com simplicidade franciscana, frei Bonifácio lançou-me um braço pelo ombro: Mais um motivo, irmão, e que motivo, para vos considerar um precioso amigo. Depois de Pádua veio Verona, bela e vetusta cidade atravessada, em longa curva, pelo rio Ádige. Transpusemo-lo pela ponte do castelo velho, seguimos por ruas estreitas até uma praça que havia sido um antigo fórum romano, rodeada por belos palácios de lindas fachadas ornadas de frescos, visitamos templos magníficos e seguimos nosso caminho pela margem do rio, entre o viço da vegetação luxuriosa, e envolvidos de um deslumbroso panorama, com o lago de Garda à nossa esquerda, subimos até Trento.

Era evidente que me aturdia com as imagens externas, mas o ambiente de Trento sobrepujava as formas exteriores do velho burgo e por toda a parte os espíritos estavam virados para a discussão dos problemas da Igreja, que, para além de temas da fé, tinham um alcance político universal. Porém, sendo Trento o templo do dogma, nunca senti tanto em mim crescer a dúvida como aí, pois ao assistir a longos e doutos debates sobre certos artigos de fé eu presenciava o triunfo de uma tese sobre outra tese e não deixava de pensar que, noutras circunstâncias ou com outros teólogos e doutores, talvez fosse a tese vencida a vencedora e aquilo que se decidira ser dogma a partir daquela votação quiçá o não seria a partir desta outra. Logo, o dogma não tinha valor absoluto, ecuménico, infalível, divino. Ao ver todas aquelas cabeças mitradas, a maior parte delas encanecidas, senis, vinham-me ao espírito ideias loucas que depois me atormentavam a consciência: que Cristo nunca poderia ter usado uma mitra, uma tiara; que o aparecimento de um Francisco de Assis era sinal da necessidade periódica que a própria Igreja sentia de se purificar e se aproximar da divina fonte; que a reforma de que a Igreja necessitava não era aquela que estava a ser feita, mas sim a daquele espírito que presidiu à ideia de convidar, como de facto se convidaram, os nossos irmãos protestantes e todos juntos tentarmos unir a grande família cristã dividida. Bastava um pouco mais de humildade, de caridade, de parte a parte! Mas tudo isso estava a falhar!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,