sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Os homens soltavam comentários indecentes e esticavam os cotovelos para que eu tropeçasse, mas eu estava acostumado a ser insultado e tinha os pés ágeis…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

A chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491

«(…) No dia seguinte, o capitão entregou-me ao mestre remador, que se chamava Panipat. Era um gigantesco homem-urso com braços grossos, peito e pernas musculosos, vestido apenas com calções curtos de couro, um chicote e uma faca comprida enfiados no cós. Cada centímetro de pele exposta estava coberto por tatuagens pretas e azuis, até, e incluindo, a superfície da sua cabeça rapada. Amarrada em volta do pulso havia uma corda da qual pendia a chave da corrente dos escravos. Está na hora de você conhecer Panipat. O capitão Cosimo cutucou com a bengala as minhas costas, empurrando-me à sua frente ao longo da estreita passarela de madeira que percorria o centro do barco. Panipat estava sentado na vante conversando com um tripulante que cuidava do canhão posicionado ali. Aquele era o local onde ficava o pequeno grupo de remadores acorrentados, logo atrás da proa. Os quatro de um lado eram árabes, provavelmente capturados e comprados pelo capitão num mercado de escravos. Os quatro do outro lado eram homens de diferentes lugares que haviam sido sentenciados às galés por causa da gravidade dos seus crimes. Se fossemos atacados e o nosso canhão servisse de alvo para o fogo inimigo, eles seriam as primeiras baixas. Havia evidências de que o chicote fora usado nas suas costas e ombros. Estremeci quando os vi, cada um acorrentado ao seu banco, pois sabia que, no devido tempo, aquele seria o meu destino. Interminável e para sempre.

O capitão Cosimo anunciou a nossa presença. Se isso lhe agrada, nobre mestre dos remadores, tenho um novo rato de galé para você. Panipat levantou-se, assomando acima de mim. Deu um aterrorizante sorriso que expôs dentes quebrados e a falta destes. Deixa eu dar uma olhada no Ratinho. Firmou as mãos em volta do meu pescoço, sacudindo-me no ar, deixando meu rosto a poucos centímetros do seu. Vai obedecer a todas as minhas ordens! Cuspiu na minha cara. Imediatamente e sem questionar. E, se me causar qualquer problema, esfolarei cada centímetro de pele do seu corpo. Entendeu? O sangue latejava no meu cérebro. Não conseguia sequer murmurar uma resposta. Responda! Ele me sacudiu com tanta força que pensei que meus ouvidos iriam explodir, e os olhos, saltar da cabeça. O capitão bateu no seu ombro com a bengala. O rapaz não consegue responder-lhe pois está com as mãos em volta da sua traqueia. Panipat soltou-me, e desabei no convés a seus pés, onde grasnei, tentando recuperar o fôlego. O capitão baixou o olhar para mim. Creio que o Ratinho entendeu muito bem, observou, com alguma compaixão na voz. Panipat explicou o que queria que eu fizesse.

Em cada extremidade da passarela havia um barril de água fresca. Eu teria de reabastecê-los, todas as noites, de um enorme tonel mantido em baixo da passarela, que era onde a nossa carga ficava estivada também. Recebi uma funda concha de madeira com um cabo comprido. Durante o dia, tinha de encher essa concha e subir e descer a passarela dando água aos remadores que a pedissem; na subida, para um lado, na descida, para o outro. A maioria dos homens livres trazia as suas próprias garrafas de água, as quais eu também mantinha reabastecidas. Por minha vez, podia tomar um gole a cada vez que completava a volta na popa, na extremidade do barco. De manhã bem cedo zarpamos. O vento estava fresco, e, por isso, mais ou menos durante a primeira hora fomos conduzidos principalmente pela vela e eu simplesmente percorri a passarela de cima a baixo, fazendo o que me fora instruído. Os homens soltavam comentários indecentes e esticavam os cotovelos para que eu tropeçasse, mas eu estava acostumado a ser insultado e tinha os pés ágeis, portanto isso não me incomodou muito. Então o sol ficou mais alto, o vento diminuiu e ficamos em águas paradas sem qualquer abrigo à vista. Na plataforma elevada da popa, o capitão Cosimo estava sentado debaixo de um toldo estudando seus mapas e traçando o curso. Os homens livres e até mesmo alguns dos escravos haviam almofadado os seus bancos com trouxas de aniagem e usavam tiras desse pano para proteger os ombros e a cabeça dos raios do sol do meio-dia, já que a faixa de toldo acima não era larga o bastante para cobri-los adequadamente. Percebi que precisava movimentar-me com mais rapidez para atender suas exigências por água. Em pouco tempo estavam berrando insultos contra mim por eu ser lento demais.

Enquanto isso, Panipat estava montado num banquinho na popa, logo abaixo da plataforma de comando, gritando orientações enquanto o capitão, que também agia como piloto, dava instruções sobre a direcção que devíamos tomar. Então o mestre dos remadores levantou-se. Ei! Ratinho!, gritou para mim. Dê um gole para cada homem ao subir e descer. Nada mais do que isso, ou eu o esfolarei vivo! Os remadores começaram a reclamar. Panipat então colocou-os numa braçada forte e constante, e suor escorreu das suas testas e antebraços. Os escravos e os criminosos sem qualquer cobertura em suas costas sofreram mais, e, a cada volta que eu dava, um homem mais velho continuava me implorando por mais água. Eu sacudia a cabeça, mas, afinal, em desespero, ele cravou os dentes na borda da concha de madeira e tentou engolir tudo, derramando água pelo seu rosto e torso. Panipat deu um salto, foi batendo o pé pela passarela e o atingiu no rosto com a ponta do cabo do seu chicote. Cão, bradou ele. Ninguém neste barco desobedece às minhas ordens!»  In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,