sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O Pintor das Almas. Ildefonso Falcones. «As mulheres explodiram em gritos de vitória, enquanto os poucos passageiros que ousaram utilizar o transporte e viajavam na parte superior do vagão, ao ar livre, sentados ao sol…»

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Barcelona, Maio de 1901

«(…) Não havia muitos anos, quatro ou cinco, Dalmau cometeu o mesmo desplante perante a polícia; a mãe atrás dele, a gritar, exigindo justiça ou melhorias sociais, encorajando-o à luta, como fazia a maioria das mães que interpunham os filhos em defesa de causas que consideravam superiores, inclusivamente a sua própria integridade física. Por instantes, os gritos das mulheres provocaram em Dalmau uma embriaguez semelhante à que viveu quando fez frente à polícia. Na altura, sentiam-se deuses. Lutavam pelos operários! A Guarda Civil ou o exército carregaram sobre eles algumas vezes, mas hoje nada disso iria acontecer, disse Dalmau para si, desviando o olhar para as grevistas que faziam frente ao eléctrico. Não. Aquele dia não estava destinado a que a força pública atacasse as mulheres; pressentia-o, sabia-o.

Dalmau não tardou a localizá-las. Na primeira fila, à frente de todas, com o olhar desafiante, como se fosse o suficiente para deter o eléctrico da linha de Gràcia que se aproximava. Dalmau sorriu. O que não conseguiriam aqueles olhares? Montserrat e Emma, a sua irmã mais nova e a sua noiva, ambas inseparáveis, unidas pela infelicidade, unidas pela luta operária. O eléctrico aproximava-se fazendo soar a campainha; o sol que se infiltrava por entre o arvoredo das Ramblas arrancava centelhas às rodas e aos restantes elementos metálicos do vagão. Uma ou outra mulher recuou; poucas, muito poucas. Dalmau esticou-se. Não temia por elas; o eléctrico iria parar. Mães e polícias calaram-se, atentos. Muitos curiosos retiveram a respiração. O grupo de mulheres que se encontrava em cima dos carris pareceu crescer sobre si mesmo, firme, tenaz, disposto a ser atropelado.

Parou.

As mulheres explodiram em gritos de vitória, enquanto os poucos passageiros que ousaram utilizar o transporte e viajavam na parte superior do vagão, ao ar livre, sentados ao sol, desciam aos tropeções para fugirem, depois de o condutor e os revisores, todos fura-greves, terem saltado do eléctrico antes mesmo de este parar. Dalmau contemplou Emma e Montserrat, as duas com o punho crispado erguido para o céu, sorridentes, a celebrarem, eufóricas, a vitória com as suas companheiras. Ainda não tinha passado um minuto quando aquelas centenas de mulheres se aproximaram do eléctrico. Vamos! Vamos a ele! A Guarda Civil quis reagir, mas a barreira com as crianças avançou para os agentes. Foram muitas as mãos que se apoiaram na parte lateral do vagão. Outras tantas, as que não alcançavam a máquina, apoiaram-se às costas das grevistas que estavam à frente. Empurrem!, gritaram várias ao mesmo tempo. Com mais força! O eléctrico balançou em cima das rodas de ferro. Mais! Mais, mais… Um, dois… O vaivém aumentou ao ritmo do alento que davam umas às outras. Por fim, um rugido que surgiu daquelas centenas de gargantas precedeu a queda do vagão. O estrondo confundiu-se com o ruído dos estilhaços, o entrechocar dos ferros e uma nuvem de pó que envolveu o eléctrico e as mulheres. Um brado quebrou o silêncio relativo que se tinha instalado depois de o vagão ter embatido no solo. Saúde e revolução! Viva a anarquia! Greve geral! Morte aos frades! Mais trabalho e melhores salários. Reduzir as jornadas extenuantes. Acabar com o trabalho jovem. Pôr fim ao poder da Igreja. Maior segurança. Casas decentes. Expulsão das ordens religiosas. Saúde. Ensino laico. Alimentos acessíveis… Mil reivindicações troaram na Rambla das Flores, de Barcelona, para serem partilhadas por uma mole de gente humilde, cada vez mais numerosa, que se ia reunindo e aplaudia fervorosamente aquelas mulheres trabalhadoras». In Ildefonso Falcones, O Pintor das Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.

Cortesia de SumadasLetras/JDACT

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