terça-feira, 2 de novembro de 2021

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Ninguém reparou, e o profetista levantou-se, veloz, e afastou-se cerca de vinte metros, escondendo-se no meio de quem passava»

 

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«(…) Quando a terra começou a tremer, Bernardino assistiu, horrorizado, à queda daquelas enormes estruturas. A terra tremeu duas vezes no espaço de pouco tempo, e o improvisado parque animal nos jardins reais entrou em convulsão. Pássaros voaram, aos guinchos; macacos fugiam das árvores em queda; leões e pumas rugiam, provavelmente tão aterrados como os poucos humanos que por ali andavam; e até os elefantes e os rinocerontes pareciam siderados pela fúria dos tremores da terra. Uma nuvem de poeira castanha subiu da terra para o céu, e Bernardino afastou as folhas das árvores e os ramos que tinham caído por cima dele. Dois domadores de leões surgiram, preocupados, pois as jaulas tinham abatido e as feras começavam perceber que podiam abandonar os locais de cativeiro. Ouviam-se muitos gritos, vindos da igreja, e Bernardino alarmou-se. Teria o rei sido ferido pelo terramoto? Decidiu regressar à igreja, mas deu conta de movimento perto de si, e viu um pequeno puma, do tamanho de um gato, a correr na sua direcção, assustado. Seguiu-se um rosnar desagradável, vindo de trás de uma árvore, e nem parou para pensar. Desatou a correr, atravessando o jardim aos pulos, enquanto os pássaros cacarejavam nas suas costas. Só parou junto do portão do jardim, que caíra com os abalos. Viu alguns homens e gritou-lhes: Cuidado! Há leões e pumas à solta! Assustados, os guardas rapidamente tentaram recolocar o portão nos fechos. Bernardino seguiu, a correr, até à Igreja, e só se tranquilizou quando viu a figura do rei. O Monarca José I estava de pé. Combalido, mas vivo.

Pelos meus cálculos, mais ou menos ao mesmo tempo que o rapaz se cruzava connosco próximo da Sé de Lisboa, uma extraordinária visão se apresentava aos olhos de irmã Margarida. Ainda hoje me lembro da emoção com que ela me descreveu o Rossio. Ao ver a praça, irmã Margarida deduziu que a cidade inteira ali acorrera ao mesmo tempo. Havia milhares de pessoas a correrem de um lado para o outro, ou sentadas no chão a rezarem ou a chorar, e era como se naquele momento de infelicidade geral uma voz superior aos habitantes os tivesse mandado reunirem-se a ali, para partilhar a dor e tentar sobreviver em conjunto. Caminhava uns metros atrás do profetista e da freira mais velha quando reparou que, à sua esquerda, o Hospital de Todos-os-Santos não caíra, embora apresentasse fendas na fachada, que a rasgavam de alto a baixo. Às janelas, os doentes observavam o Rossio. Ao ver a freira mais velha estacar à sua frente, com cada vez mais dores na perna, irmã Margarida perguntou: Consegues continuar? A perna também lhe doía, mas não tanto que se visse forçada a parar. Se ficar p’ra trás, eles boltam a prender-me, protestou a mulher mais velha. E a ti tamvém. Num acredites no confessor, eles num bão deixar-te à solta. Estamos os três cundenados à morte pela Inquisição (maldita). Temos de fugir juntos. No entanto, o profetista não esperara por elas, e já ia muitos metros à frente, fundindo-se com a multidão. Pelo menos nós duas, sugeriu a freira mais velha.

Irmã Margarida sabia que o desejo da outra mulher em ficar junto dela não era inocente, mas o seu bom coração não lhe permitia deixá-la para trás. Vamos, disse. Irmã Alice passou o braço por cima dos ombros de irmã Margarida, e a rapariga carregou-a. Dias depois, confessou-me que sentira a mão da mulher mais velha a tocar-lhe levemente no peito, mas, como não sabia se era um gesto intencional ou fortuito, não a afastou. As duas foram caminhando, agora mais lentamente, observando a loucura geral que se apoderara dos habitantes de Lisboa. Havia quem puxasse corpos pelos pés, arrastando-os pela praça, sem se perceber qual o destino que lhes iriam dar. Havia mulheres coxas, que gritavam de dor ao andar, usando traves cheias de pregos como bengalas. Havia homens deitados no chão, a sangrarem e a gritarem, que pareciam loucos, fazendo gestos rápidos, como se estivessem a afastar as moscas no ar, mas que só combatiam as terríveis visões que lhes povoavam a mente. Havia crianças, sem pernas ou sem braços, e até sem cabeça.

Muitos estavam agrupados e rezavam, pedindo perdão pelos seus pecados. As pessoas não sabiam o que fazer a seguir, e não havia médicos, nem ninguém para minorar as dores. Meu Deus, murmurou irmã Margarida, aterrorizada. Num olhes, criança, ordenou-lhe a mulher mais velha. Bamos, bamos. Temos de nos afastar, para que os guardas num nos encontrem. Foram atravessando aquela miséria até que chegaram a meio da praça e viram o profetista, sentado no chão, junto a um grupo de pessoas, como se fizesse parte dele. Pareciam ser duas famílias amigas, com homens, mulheres e crianças, e alguns lamentavam-se, mas outros recordavam a sorte que tinham tido, e as coisas que tinham conseguido tirar de casa a tempo. Ao lado, estavam pousados alguns baús de madeira, em cima dos quais se viam peças de roupa soltas. Irmã Margarida compreendeu de imediato qual era a ideia do profetista, e segundos mais tarde viu-o, pelo canto do olho, a roubar um casaco. Ninguém reparou, e o profetista levantou-se, veloz, e afastou-se cerca de vinte metros, escondendo-se no meio de quem passava». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,