terça-feira, 23 de novembro de 2021

Fernando Campos. A Casa do Pó. «Pois conheceis-me?, exclamei, caindo de surpresa em surpresa, pois o papel que me dera tinha desenhada, num dos cantos, uma estrela de cinco pontas...»

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Roma... Veneza... Trento

«(…) O exame interior das minhas dúvidas levava-me a encarar de novo com a minha alma, a minha vida, os meus problemas subjectivos, por algum tempo adormecidos pela novidade das viagens, dos lugares, das pessoas, do trabalho. Caía em mim. Que estava eu aqui a fazer? E de repente senti-me só no mundo e as pessoas e coisas que me rodeavam tornavam-se-me estranhamente alheias e agressivas. Tinha saudades de não sei quem e de não sei que terra longínqua, imensas, pungentes saudades!...

Em Trento fiz um conhecimento que, tornando-se amizade, muito me ajudou neste meu estado de espírito. Frei António Zedilho fazia parte da comitiva do doutíssimo frei Francisco Orantes, que viera ao Concílio em representação do bispo de Palência. Teria os seus trinta anos e picos como eu. Estatura acima da meã, magro na sua estamenha de franciscano, cabeça pequena que estreitava em direção ao queixo pontiagudo, para quem o estivesse a olhar de frente; nariz afilado, adunco; o jeito peculiar de encavalitar o lábio superior sobre o inferior; barba rala, orelhas enormes realçadas pelo cabelo cortado rente; pouco falar, muito ouvir: sábia disposição! Conquanto teólogo, a sua sabedoria ainda incipiente e livresca, pois de pouco se formara, revelava-se mais de memória que de destreza no raciocínio e no discurso. Quando soube que eu me preparava para acompanhar frei Bonifácio de Aragusa à Terra Santa, manifestou-me desejos, há muito acalentados no escrínio da esperança, como ele pomposamente dizia, de ir visitar os sagrados lugares. Apresentei-o a frei Bonifácio e ficou assente que, colhidas as licenças dos superiores, iria connosco para Veneza a fim de nos embarcarmos, tanto mais que Francisco Orantes não desejava demorar em Trento e resolvera regressar à sua terra.

Em Veneza, enquanto não chegava o dia da partida, dedicamos o nosso tempo a prover-nos das coisas indispensáveis para tornar a viagem um pouco menos desconfortável ao corpo: colchão, almofada para a cabeceira, cobertor, colcha de algodão, lençóis, tudo artigos que se adquirem por preço muito baixo e que, no regresso, se vendem outra vez com facilidade e até com ganho. Se se leva bolsa que não falte, convém abastecermo-nos de algumas outras coisas necessárias: roupa interior e alguma comida, como biscoito, queijo e outros mimos, porque ainda que se coma à mesa do patrão da nau, sucede frequentemente não serem as refeições do nosso gosto, ou nos intervalos ter-se corporal necessidade, ou desejar-se convidar a um amigo ou fazer alguma obra de caridade ao próximo, ou adregar de ser o despenseiro pouco caridoso e algum tanto avarento. Pessoalmente queria também levar outras pequenas coisas, como papel e tinta, pois tinha a intenção de anotar o mais possível do que me fosse dado conhecer numa para mim tão rara e importante peregrinação. Fui pelas lojas à procura do que havia deliberado comprar e entrei às tantas na de um judeu velho que era uma espécie de tem-tudo. Vendo-me comprar tais artigos, inteirou-se de que eu ia embarcar para a Terra Santa e pediu-me se, ao passar em Corfu, não poderia fazer-lhe a mercê de entregar a um judeu seu amigo, de quem dizia o nome, uma encomendinha. Respondi-lhe que com muito prazer o faria e perguntei: E esse Isac Beiçudo que dizeis onde o posso encontrar? Riu-se com gosto o judeu e, num português correctissimo e sem sotaque, disse: Não é Beiçudo. É Bensaúde, Isac Bensaúde-e inclinou-se sobre o balcão a escrever num papel a morada do judeu. Ainda eu não estava refeito da surpresa: Aqui tendes, e entrega-me o papel. Dizei-lhe que ides da parte de Joseph. E muito obrigado vos fico pela mercê, frei Pantaleão.

Pois conheceis-me?, exclamei, caindo de surpresa em surpresa, pois o papel que me dera tinha desenhada, num dos cantos, uma estrela de cinco pontas... Como muitos de seus irmãos de religião e raça, contou-me ele, era um judeu português fugido à fogueira da Inquisição (maldita). Uma triste e dolorosa realidade que, pela sua frequência, se tornava um facto de que não havia que espantar. Vira-me muita vez em Évora e um filho seu andara comigo na escola quando na idade de sete anos. Talvez me lembrasse dele, o Joaquim ... Sim. Lembrava-me muito bem. Éramos amigos. Que era feito dele agora? Médico em Setúbal. Mas não estava contente. Tinha notícias de que, logo que pudesse, saía de Portugal e vinha ter consigo...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,