terça-feira, 3 de outubro de 2023

Lázarus. Georgette Silen. «A rodoviária estava literalmente um inferno. Multidões caminhavam apressadas para suas plataformas, carregando bagagens enormes, multicoloridas»

Cortesia de wikipedia e jdact

Bristol. Inglaterra. Junho

«Vamos,  é só dar um passo, só mais um. Você consegue. O que tem a perder? Você não tem mais nada! O pensamento chegou quando a brisa da maré alta soprou. O cheiro de maresia salgada com peixe podre, misturado ao tabaco e bebida que vinham dos bares próximos, dava enjoo. Ou será que eu estava amarelando?

 Não, você já tomou essa decisão, não vai voltar atrás. E voltar atrás para quê? Falava sozinho, olhando para o atracadouro onde as ondas batiam ferozes, respingando nos meus pés. O mar ficava agitado naquela época. Bom, é isso aí. Olhei em volta mais uma vez, para ter certeza de que não tinha ninguém por perto. Não, não havia ninguém. Eu estava sozinho. Sozinho. Como sempre fora a minha droga de vida. Uma porcaria sem fim!

Apertei os nós dos dedos. E daí que estava sozinho? Era melhor assim. Quem iria se importar comigo? Com o idiota e beberrão do Holly Finger? Quem notaria minha falta? Minha ex-mulher, aquela vaca maldita? As prostitutas do Samuel’s? Talvez sim, dei um sorrisinho. Eu mandava bem, isso as vadias poderiam confirmar para qualquer um. Meu senhorio? Ele daria queixa à polícia por falta de pagamento ou pegaria minhas coisas no quarto barato para cobrir o prejuízo. Coitado! Dei risada. Nem mesmo no trabalho dariam por minha falta. Não fui despedido àquela tarde por,  como foi mesmo que o escroto do meu patrão dissera?  Um comportamento inadequado de atrasos e por estar alcoolizado no expediente?

Pelo menos pude desforrar naquele me… um bom par de golpes antes que me jogassem na rua. E o almofadinha ainda ameaçou chamar a polícia! Desgraçado!  À me… com todos eles!,  resmunguei, dando mais um gole na garrafa. O conhaque ardeu e me fez lacrimejar. Eu logo estaria livre de todo aquele bando de corvos fedorentos e carniceiros! Era só dar mais um passo...

E então percebi que não estava sozinho como pensara.  Quem está aí?, chamei para a escuridão. Não conseguia enxergar direito, mas tinha certeza de que alguém estava parado a uns vinte passos.Me…!Tudo o que eu não queria era um mala para bancar o herói. O estranho não se mexeu nem respondeu. Seja lá quem for, você está me atrapalhando aqui, parceiro, engrossei a voz. Melhor ir dando o fora antes que eu... Parei de falar. Não havia ninguém ali. Pisquei os olhos várias vezes para conferir. Comecei a dar risada. Holly, sua besta! Agora você deu para ver coisas?

Melhor acabar logo com isso. Virei-me para o cais e tremi em um arrepio, assim que a brisa aumentou por detrás do meu corpo. Foi tudo muito rápido. Al São Paulo. Dezembroguma coisa me agarrou pelas costas e senti o rasgo na garganta. Apesar da dor, consegui olhar para trás, para o grande par de olhos vermelhos na escuridão.

Terminal Rodoviário do Tieté São Paulo. Dezembro

Feliz Natal! A rodoviária estava literalmente um inferno. Multidões caminhavam apressadas para suas plataformas, carregando bagagens enormes, multicoloridas. Parentes se despediam, mandando lembranças para suas famílias. Lágrimas e choro por toda parte. Enquanto as pessoas se acotovelavam, o risonho Pai Natal continuava a desejar um feliz Natal, distribuindo balas às crianças e folhetos informativos aos passageiros. Lembrei-me de Ben...

Ambulantes passavam oferecendo água, refrigerantes, sucos, biscoitos, em cadências e sotaques dos mais variados. Era impossível livrar-se deles. Estava ansiosa pelo silêncio e a ordem dentro daquele caos. Eu deveria ter tomado um avião. Mas essa provavelmente teria sido a pior solução, se é que haveria alguma boa em meio aos derradeiros acontecimentos. Faziam realmente sentido as últimas 24 horas? Como aquele rastreador conseguiu me encontrar? Eu não deixara vestígios durante o último ano, tudo tinha sido meticulosamente planeado para evitar isso. Era o mínimo que eu poderia fazer: sumir, desaparecer, proteger os que ficaram para trás. Era meu principal objectivo, maior do que qualquer outra necessidade.

Campo Grande, 21 horas e 30 minutos, plataforma 37. Passagens, por favor!, gritou o fiscal da empresa de ónibus, afastando meus devaneios e me fazendo caminhar para a fila de embarque.

Não levava bagagem, apenas duas mochilas com coisas importantes para alguém em minha situação. Por isso, rapidamente entreguei meu bilhete e embarquei. Com alívio afundei o corpo na poltrona nos fundos do veículo e puxei as cortinas, numa tentativa de conseguir paz e silêncio para raciocinar. Foi um golpe de sorte,  o único dentre os problemas que aconteceram,  achar uma passagem disponível naquela época do ano, pois elas se esgotavam bem antes. Uma sorte que não convinha desperdiçar nem abusar». In Georgette Silen, Lázarus, Editora Giz, 2013/2014, ISBN 978-857-855-186-5.

 

Cortesia de EGiz/JDACT


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