sexta-feira, 13 de outubro de 2023

O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo. João P. Rodrigues Carvalho. «Porque a infância é a libertação do leite maternal, a liberdade da imaginação, o caos e a guerra perdida contra este, a dor do crescimento dos dentes para a criança se alimentar sozinha, rasgando o mundo»

jdact e cortesia de wikipedia

As Fontes Secas. Hauridas. Queimadas

«O narrador prossegue descrevendo a formação do seu estilo, a história da resolução de inúmeras equações de terceiro grau, obtendo sempre uma solução inegável, só pelo próprio esforço intelectual, como se resolvesse a si mesmo perfeitamente, equacionado no papel; o método completa-se com a audição do Concerto Brandeburguês nº 5 de Bach, um único concerto, ouvido uma e outra vez, afinando o estilo do indivíduo na repetição, expurgando o caos sonoro que alterna loucamente ruídos e silêncios, depois de expurgado o caos epistemológico usando a matemática. Então, de repente, o argumento vira-se para a poesia, autocitando-se um excerto da parte VI do poema Elegia múltipla: As crianças enlouquecem em coisas de poesia. / Escutai um instante como ficam presas / no alto desse grito, como a eternidade as acolhe / enquanto gritam e gritam. / (...) / E nada mais somos do que o Poema onde as crianças / se distanciam loucamente. (Helder, 2015b: 9), opondo as crianças, a loucura e a poesia, dum lado, ao estilo, do outro; empubescer seria assim, simplesmente, o começo da procura dum estilo, duma memória, a renúncia à imaginação violenta das crianças, que desejam absolutamente algo a todos os instantes, sem o compararem com qualquer dos desejos anteriores, esquecendo-os.

A sua loucura, a sua relação ilógica com o mundo, permite-lhes transformá-lo incessantemente, aceitá-lo sempre como completamente novo, verdadeira surpresa. E é nesta loucura que a infância é infeliz, rompendo por todos os lados, fazendo a criança duvidar da sua própria existência, do próprio mundo, demente, demasiado forte, torturando-a até ceder, até ter de criar um estilo para se poder travar, apaziguada; por isso, a infância é tão vertiginosa, recriando-se a todos instantes, excedendo-se sempre com uma nova loucura totalmente diferente da anterior: bruxaria, astronáutica, pirataria, policiamento, ladroagem, medicina, infantaria. E, por sua vez, o poeta reproduz a infância, ou é inventado nesta, porque não pode ser adulto, simples, idiomático, tem de explodir sempre como uma criança: loucamente.

Como as crianças inventam o Poema que contém os adultos, estilos abandonados que duram meio-vivos, o poema deve capturar apenas um instante, um grito, um estilo momentâneo, logo afastado, exilado para sempre: eterno porque singular, irrepetível; permitindo ao poeta reformar-se de seguida, dolorosamente, para criar algo novo outra vez. Uma verdade que parece resistir no mais estilizado dos homens, finalizando o conto esperançosamente: Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade? [...] Talvez o senhor seja mais inteligente do que eu, ou finalizando-se cruelmente, pois o conflito mantém-se (Talvez), entre a loucura e o estilo, entre o caos e o contínuo, mantendo o Segredo longe e perto, duplamente doloroso: ora como uma paixão apartada, ora como uma faca espetada.

Nota: A escolha de Bach não deixa de ser significativa: pela sua evocação do Barroco, fundamentalmente antitético (no contraponto, neste caso), excessivo, e pela obsessão deste compositor, em particular, por fugas: variações sobre uma frase musical inicial, ritmo esse diversas vezes utilizado pelo poeta, como, por exemplo, no poema (escrita pouco inocente).

Esta tensão com a origem, este perpétuo movimento pendular, será explorado numa imagem recorrente: a mãe, a fonte: Ela é a fonte. Eu posso saber que é / a grande fonte / em que todos pensaram. (Helder, 2014: 45); estranho uso do pronome, sem antecedente gramatical (iniciando o poema Fonte, como este fosse universal: pois o sujeito poético sabe que a mãe é a fonte, mas não a nomeia nesta parte I do poema (com seis partes), mesmo descrevendo as irmãs e o pai, evita essa palavra, sublinhando-a na ausência, recusando a possibilidade de conseguir nomeá-la, de conseguir descrevê-la: Ninguém falava dela, porque / era imensa, deixando a mãe como um silêncio debaixo do discurso, como um lençol de água subterrâneo fertilizando o terreno visível, fertilizando todos em cima, como mãe geral:

Mãe, como uma cadela alimentando uma ninhada, com o número apropriado de mamilos, sem necessidade de disputas fraternais: Era um manar / secreto e pacífico, uma mãe muda, calando os seus filhos por amamentação, ocupando suas bocas, apaziguadas; na imagem oposta à ruidosa violência infantil. Porque a infância é a libertação do leite maternal, a liberdade da imaginação, o caos e a guerra perdida contra este, a dor do crescimento dos dentes para a criança se alimentar sozinha, rasgando o mundo». In João P. Rodrigues Carvalho, O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo, Caso de Estudo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2018.

Cortesia de FCSH/JDACT

JDACT, João P. Rodrigues Carvalho, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Herberto Helder,