sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «E se nos pararem e interrogarem?, perguntou o Papá. Serão uma família de peregrinos que vão em direcção à cidade do Porto, para daí seguirem o caminho da peregrinação até Santiago de Compostela»

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Sevilha, 1492

«O Papá surge do escuro como um fantasma. Põe o braço à volta dos ombros da Mamá e puxa-a para a viela; a seguir, fecha a porta atrás deles com um ruído seco. Por baixo do casaco do Papá, Paloma entrevê o reflexo do punhal que traz sempre consigo encaixado no cinto, uma lâmina curta com punho de madeira, um presente que o pai dele lhe dera quando se fizera ao mar pela primeira vez. Está afiado e pronto para cortar pão, amanhar peixe ou espetar entre as costelas de um homem'

Servir-me-ei dele, se for preciso - dissera o Papá há pouco tempo, enquanto afiava o punhal, ignorando a expressão horrorizada da Mamá, que se encolhera toda ao ver a lâmina aguçada. Paloma olha a arma com inveja. se ao menos ela tivesse o seu próprio punhal! Um punhal com uma lâmina tão afiada como o do Papá. E havia de usá-lo, sem dúvida. um só punhal nunca será suficiente para os proteger a todos.

A viela estreita está mergulhada na mais completa escuridão, e os muros à volta transmitem-lhes um sentimento de opressão. À medida que caminha, Paloma sente a pressão do alaúde que lhe cinge os ombros e o peso familiar da chave no bolso. Naquele silêncio mortal, a respiração arquejante ecoa-lhe dentro da cabeça, e o ritmo dos próprios passos repete-se incessantemente aos seus ouvidos. Vão-se embora. Vão-se embora. Vão-se embora.

O Papá acelera o passo, e agora os pés dela voam sobre o caminho de terra, atravessando o negrume estonteante da praça e entrando pelo labirinto escuro de casas dentro. Passam pela sombra da Igreja de Santa Maria La Blanca, outrora a principal sinagoga da comunidade, uma rajada de vento varre os cheiros fétidos a esgoto e a fumo pelas vielas fora, erguendo uma nuvem de poeira que lhes apaga as pegadas.

Depois, deixam para trás a torre da Igreja de Santa Catalina, : o minarete da antiga mesquita de São Marcos ergue-se na escuridão. A madrugada ainda vem longe, a Lua é um pálido crescente na taça de ébano da noite. Já passou o equinócio da Primavera. Este ano não houve chuvas. Terão uma visão nítida das Estrelas que os guiarão em direcção ao Ocidente.

Agora já falta pouco para a porta na muralha da cidade. O amigo do Papá, o mouro Ismael, vai estar lá à espera deles. Naquela tarde, quando for buscar os documentos e valores da família, avisou-os de que não se atreveria a arriscar acordar de noite a vizinhança com o som das ferraduras dos cavalos no chão. Encontramo-nos na porta da cidade, dissera ele. Trarei mulas e mantimentos para a viagem. Os papéis e as jóias vou escondê-los num compartimento secreto da carroça, onde estarão a salvo. Iremos por um caminho que conheço através das colinas do sopé de Al-Andaluz até à  fronteira de Portugal.

E se nos pararem e interrogarem?, perguntou o Papá. Serão uma família de peregrinos que vão em direcção à cidade do Porto, para daí seguirem o caminho da peregrinação até Santiago de Compostela. O guarda da porta da cidade é um pobre diabo que, se não estiver já bêbedo, em breve estará, por meia dúzia de ducados». In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,