sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Aproximou-se de Ramiro, ficando com o rosto em frente ao dele, para que o rapaz olhasse para as suas horríveis feições, e resmungou: Se tendes medo do que vedes, é melhor regressardes a Coimbra, pois irei para a cova assim, não vou sarar»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«Gondomar examinou-o e perguntou: Que idade tendes? Ramiro disse-lhe que tinha dezassete anos, e o velho murmurou: Idade suficiente para decidir pela vossa cabeça. Ao escutar esta mudança de opinião, o rapaz sorriu, animado, mas o cavaleiro avisou-o: Se Paio Soares se zangar, tereis de dizer a verdade, que é por vossa vontade que aqui estais, não por minha. Ramiro prometeu fazê-lo, embora tivesse a certeza de que tal não seria necessário. Com uma força inesperada para alguém da sua idade, Gondomar içou-o para o seu cavalo, e Ramiro sentou-se atrás dele na sela. Mal o animal recomeçou a andar, o rapaz sentiu um enorme alívio. Parecia que as pernas e os pés se distendiam e o seu corpo finalmente descansava.

Nas horas seguintes, é provável que tenha adormecido, embalado pelo andar do animal e encostado a Gondomar. Só quando a madrugada chegou é que espevitou e observou com atenção os restantes cavaleiros do grupo. Todos tinham um manto branco a cobri-los, usavam vestes modestas por baixo e pareciam homens de poucas posses. Um deles era muito grande, mas o seu companheiro de cavalo era o oposto, com o cabelo cortado rente, ao contrário dos outros, que usavam todos barba.

No segundo cavalo, ia montado um homem que tinha um rabo muito gordo, que caía para cima da garupa do animal, e à sua frente seguia outro que estava sempre a coçar a cabeça. Por fim, na garupa do terceiro cavalo, encontrava-se um indivíduo de cara disforme, com enormes elevações nas bochechas, cuja cor era avermelhada. Metia impressão olhar para ele e por isso Ramiro evitou fazê-lo, nem reparando bem no seu companheiro da frente, que guiava o animal.

Ninguém falou até que Gondomar deu ordem de paragem, já o céu estava alaranjado pelo nascer do Sol. Encontravam-se no meio de uma floresta e ouviam-se os pássaros lançando os seus agitados piares matinais. À beira da estrada havia uma clareira, e Gondomar disse-lhes que desmontassem ali, mandou-os colocar em círculo e depois ajoelhou e rezou uma oração em latim.

Ramiro reparou que o velho cavaleiro tinha os olhos avermelhados, parecia estar sempre a chorar. No final da reza, ouviu-o dizer: Comamos. O mestre foi junto do seu cavalo, trouxe um saco com pães e distribuiu-os. Comeram em silêncio e, depois de terminarem, Gondomar tomou a palavra.

Na nossa Ordem, não interessa o passado, mas sim o futuro. Olhando para Ramiro, prosseguiu: Temos um novo membro. Vai seguir connosco para Soure. Entre nós não há bastardos nem infanções, nem ricos-homens nem cavaleiros-vilões. Sereis igual a todos e a cada um, um monge guerreiro. Ramiro reparou que nenhum dos presentes parecia lavrador ou artífice. Deviam ser gente da floresta, antigos soldados ou servos, malados ou mesmo salteadores. Gondomar continuou: O nosso novo companheiro chama-se Ramiro, e é por esse nome que o devem tratar, a não ser que ele deseje outro.

Ramiro negou, abanando a cabeça. Então, Gondomar afastou-se um pouco, desaparecendo atrás de uma árvore. Os restantes homens cercaram o novo recruta e começaram a apresentar-se. O mais baixinho do grupo disse que o tratavam por Rato, pois era pequeno e conseguia enfiar-se nos locais mais difíceis.

Ramiro viu um punhal, com uma pérola no seu topo, enfiado no cinto do homem, e estremeceu. Era o punhal do seu pai! O mesmo que ele na sexta-feira quase usara para se matar, e que desaparecera no sábado! O pai perguntara pela arma, mas Ramiro lembrava-se de o ter deixado em casa, em cima de uma mesa, e vira-o no cinto de Paio Soares, sábado à tarde, durante o jantar.

De repente, reconheceu o homem: era o criado que chocara com o pai à entrada da tenda! Decerto fora nesse momento que roubara o punhal, aproveitando o descontrolo do seu progenitor. O Rato era um ladrão, fugira de Coimbra para evitar ser descoberto, mas Ramiro nada disse e deixou o homem seguinte apresentar-se. Era o maior e mais forte de todos, afirmou que lhe chamavam Urso, por ser assim, e os outros riram-se, divertidos. De mim ninguém se ri, disse o homem da cara disforme. Aproximou-se de Ramiro, ficando com o rosto em frente ao dele, para que o rapaz olhasse para as suas horríveis feições, e resmungou: Se tendes medo do que vedes, é melhor regressardes a Coimbra, pois irei para a cova assim, não vou sarar.

O Rato disse que o grotesco se chamava Ameixa, e que nem as mulheres da rua o queriam, pois desmaiavam se ele se aproximasse, e os outros riram novamente. Então, o Ameixa apontou para o que viera com ele no cavalo e avisou: Não vos chegueis ao Santinho, tem piolhos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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