quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

TEMÁTICA, a Maçonaria: Parte I. Fernando Pessoa sobre a Maçonaria. «Pois o mal é esse - não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe, em todo o caso, uma espécie de meia-luz, qualquer coisa como a "treva visível" de certo grande ritual»

Cortesia de jairwpr.wordpress 

Fernando Pessoa sobre a Maçonaria
Extracto do artigo que Fernando Pessoa publicou no Diário de Lisboa, (4.388) de 4/2/1935, contra o projecto de lei do deputado José Cabral, proibindo o funcionamento das associações secretas, sejam quais forem os seus fins e organização.

«Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçon, nem pertenço a qualquer outra ordem semelhante ou diferente. Não sou, porém, antimaçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente favorável da Ordem Maçónica. A estas duas circunstâncias que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria - parte que nada tem de político ou social -, fui necessariamente levado a estudar também esse assunto - assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora».
«Começo a valer. Creio não errar ao presumir que o sr. José Cabral supõe que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma Ordem secreta, ou, com plena propriedade, uma Ordem iniciática. O sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste a diferença. Pois o mal é esse - não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe, em todo o caso, uma espécie de meia-luz, qualquer coisa como a «treva visível» de certo grande ritual. Vou insinuar-lhe o que é essa diferença por o que em linguagem maçónica se chama «termos de substituição». A Ordem Maçónica é secreta por uma razão indirecta e derivada - a mesma razão por que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos primitivos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em que o que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de reconhecimento - toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império - precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são brindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez ilegítima, daquela maçonaria remota. Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro directamente no que verdadeiramente».
interessa - as consequências que adviriam, para o País, da aprovação do projecto de lei do sr. José Cabral. Tratarei primeiro das consequências internas.
A primeira consequência seria esta - coisa nenhuma. Se o sr. José Cabral cuida que ele, ou a Asembleia Nacional, ou o Governo, ou quem quer que seja, pode extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito especiais que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência
«A Maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano – isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época reage, quanto à atitude social, diferentemente.

Cortesia de anunciadordasfeirasnovas

«Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçónico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria – como aliás qualquer instituição humana, secreta ou não – apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de Maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa. Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só ideia – a "tolerância"; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama "doutrina maçónica" são opiniões individuais de Maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas: vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos tentando converter em doutrina o espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos Antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçónico em geral pelas afirmações de Maçons particulares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.

Cortesia de sedentario

O segundo erro dos anti-maçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua acção social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstâncias do meio e da época, que afectam a Maçonaria como afectam toda a gente. A sua acção social varia, dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência, onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutrinárias – as que provocaram a formação dessas Obediências distintas, pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue daqui que nenhum ato político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.

Cortesia de submarino 


Resulta de tudo isto que todas as campanhas anti-maçónicas – baseadas nesta dupla confusão do particular com o geral e do ocasional com o permanente – estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério – o de avaliar uma instituição pelos seus actos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais – que haveria neste mundo senão abominação? Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma perfeitamente definida em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores (provenientes de um uso profano do tempo) ou pelos massacres dos albigenses e dos piemonteses? E contudo com muito mais razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente, a Igreja inteira.

Cortesia de hermanubis 


Sejamos, ao menos, justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a crédito, em contrapartida, os benefícios que dela temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito – quando expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa – pelo Maçom Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellington e Blucher eram ambos Maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados – a "Entente Cordiale", obra do Maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna – o "Fausto" do Maçom Goeth.
Acabei de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos Maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a anti-maçonaria àqueles anti-maçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém». In Fernando Pessoa, Diário de Lisboa, (4.388) de 4/2/1935.

(…)
(E) foi então que, para te vingar
E à maneira de santo, os arreliar
Desceste mansamente à terra
Perfeitamente disfarçado
E fizeste entre os homens da razão
Um milagre assignado,
mas cuja assignatura se erra
Quando em teu dia, S. João do Verão,
Fundaste a Grande Loja de Inglaterra.

Isto agora é que é bom,
Se bem que vagamente rocambolico.
Eu a julgar-te até catholico,
E tu sahes-me maçon.

Bem, ahi é que ha espaço para tudo,
Para o bem temporal do mundo vario.
Que o teu sorriso doure quanto estudo
E o teu Cordeiro
Me faça sempre justo e verdadeiro,
Prompto a fazer fallar o coração
Alto e bom som
Contra todas as fórmulas do mal,
Contra tudo que torna o homem precario.
Se és maçon,
Sou mais do que maçon – eu sou templarío.

Esqueço-te santo
Deslembro o teu indefinido encanto.

Meu Irmão, dou-te o abraço fraternal.
Fernando Pessoa, últimas estrofes do poema S. João (1935)

Cortesia de A. H. Oliveira Marques/Gremio Lusitano/JDACT