quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Alfredo Alves: D. Henrique o Infante. Memória Histórica (1º Prémio de Concurso no 5º Centenário)

5º Centenário do Infante D. Henrique, 1894
Cortesia de jmgs

... Uma aragem frigida era então bem cortante, e por isso, na comitiva todos lançavam aos hombros as opas empennadas, e os giboes de felpo e os capelliços; as senhoras preservavam o setinoso das faces com os folhos de suas coifas de lã, e D. Filippa sentia-se desfallecer de fadiga, n'aquelle ambiente humido e sombrio.
O seu olhar azul e sereno turbava se de cansaço; mas D. Joao I, a seu lado, sollicito, fallava-lhe e ria, animando-a; e a sua voz forte retumbava a incitar a marcha, e entao n'um arranque de enthusiasmo os charamelleiros e manistreis, a cavallo, à frente, floreavam em suas trombetas de prata uns toques que os echos repetiam n'uma sonoridade alegre.
O Rei! O Rei!—bradava o povo, correndo.
E pela margem esquerda do Douro a multidão apinhava se, esperando. Nas tercenas de Villa Nova, o senado do Porto aguardava o monarcha; ahi estavam, portanto, Gil Gonçalves e Domingos Annes, juizes, Pero Vicente, Affonso Martins, Pero Annes e Joao Affonso, vereadores, com suas varas de insignia, bem como Affonso Goncalves, procurador.

Cortesia de conheceroporto
Numerosos barcos convergiam, como peixes em cardume à flor de agua. para a fusta real, toda engalanada de flammulas e pendões: na margem do Porto, ao grande arco ogival da quadrella de Miragaya, D. Joao de Azambuja, o Bispo, e o clero e os mais grados moradores da cidade olhavam a praia de Villa Nova; e ao
longo da prancha de desembarque ahi, Estevão Affonso, anadel, fazia desenvolver em fila os sens besteiros de conto e arricaveiros, como guarda de honra.
Chegou emfim a cavalgada às tercenas de Gaya; vigorosos braços de homens da vintena cortaram com os remos a corrente torva do Douro, fazendo com que a fusta galgasse em bem pouco tempo, a distancia de margem a margem; e de braços abertos acolhia o Bispo a D. Joao I, e o povo, clamando, fazia-lhe saudações que enthusiasmavam.
A rainha era objecto das attenções especiaes da população feminina; encaminhando-se o séquito pela tortuosa rua dos Banhos a denominada rua Nova, que então se começava, por anúduva, a qual eram obrigados os povos da cidade e seu termo, abriam-se as adufas e a ellas surgiam as moradoras do Porto a dar as boas-vindas a D. Filippa, e como se estava no inverno e nas alminhas não haviam rosas para esfolharem sobre a rainha, só com as rosas de suas faces, sorrindo, era que ellas mostravam toda a alegria que Ihes ia na alma.

Casa onde nasceu o Infante
Desenho de Pinho da Silva
Cortesia de solsapo
A comitiva parou junto as casas do Almazem, aposentadoria real. Gonçalo Lourenço, almoxarife, veiu segurar de redea o ginete de El-rei; ao passo que as donas e covilheiras iam ajudando a descer das andas a rainha.
Subiram então ao sobrado da casa e o senado, com sollicitude, foi receber as ordens do soberano. Durante a residencia real no Porto, só os mais grados officiaes da corte teriam aposentadoria na casa do Almazem; os outros e restante comitiva installar-se-hiam pelas habitações dos moradores da cidade.
( ... )
Nascera um Infante; e o bom povo do Porto, sempre leal e sempre nobre, esqueceu os aggravos de vespera e correu em frente ao Almazem a victoriar os soberanos. E faziam-se votos de felicidade ao recemnascido; e as raparigas, em danças, divagavam pelas ruas, a cantar; e juncava-se de hervas aromaticas o pavimento
em frente à casa, onde o menino começava a ver a luz do mundo.
No dia seguinte os da corte e o senado e a clerezia e as ordens religiosas, existentes na cidade, que eram as de dominicanos e franciscanos, organisaram uma procissão que o Porto viu passar pelas estreitas ruas em direcção à sua acastellada Cathedral, onde D. João de Azambuja entoou, jubiloso, o «Te Deum».
No domingo próximo seria o baptisado do Infantesinho. Logo que a aurora arqueou ao longe em um sorriso seus labios de carmim, no ambiente fresco d'essa alvorada de Março comecaram de elevar-se ondulantes as vibrações de instrumentos musicos, tangidos ao longo das ruas até então mergulhadas em trevas e solitarias.
Eram as matinadas ao baptismo do filho do Rei.
 
Cortesia de paulocampos
E as matinadas foram o inicio de estrondosa festa em toda a cidade, n'esse dia. O templo da Sé era todo engalanado de preciosas alfaias; as ruas tapetavam-se de flores e de hervas cheirosas, e os sinos como gigantescos passaros de bronze, lá no alto das torres empoleirados, não cessavam os seus repiques. Festa! Festa!
E o menino, o Infantesinho, la ia no prestito em direcção à Sé, nos braços da camareira mor D. Brites, a viuva de Vasco Fernandes Coutinho; ao lado, D. Joao I, radiante de amor paternal, mostrava-o ao povo. E este, risonho, victoriava-o.
Junto à pia baptismal D. João de Azambuja rezou as orações do ritual e D. Joao Homem, bispo de Vizeu, serviu de padrinho ao neophyto.
Recebeu este o nome de Henrique, talvez em honra de seu bisavõ materno Henrique, o Torto, pae da Duqueza Branca de Lancaster, o qual era, por seu turno, bisneto de Henrique III, rei de Gran-Bretanha.


Cortesia de paulocampos
No paço, D. Joao I, ao pé de D. Filippa, olhava o filho recemnascido e meditava.Tinha pensamentos graves; que destinos estariam reservados àquelle neto de reis? Grandiosos sem duvida. Era um predestinado aquelle menino; quando nascera, a ama notara-lhe logo no peito um signal da configurção de uma cruz.
Todos o souberam, no paço. « Hade ser um valente guerreiro de Jesus Christo!», diziam, e a voz espalhou-se na cidade e por toda ella se commentava o estranho caso, alentando-se cada qual em esperanças. In G 286, H5A53, Porto, Typografia do Commercio do Porto, 1894.

NOTA:
E tradiccção, muito crivel, que o Infante D. Henrique nasceu na casa dependente do Almazem ou Alfandega, situada à beira da Rua Nova. O Almazem foi erigido na era de 1392 (A. D. 1354), por ordem de Affonso IV, em umas almuinhas e hortas, parallelas ao muro do rio; o bispo D. Pedro considerou isso uma usurpação dos seus direitos de senhorio do Burgo e aggravou; pouca importancia Ihe deu o Rei e as casas fizeram-se. (Livro Grande do Cartorio da Camara do Porto. fol. 2). Portanto o Almazem e casas annexas eram propriedades do Rei. Como D. Joao I gostava immenso da nova rua, que mandara abrir, e a qual até distinguia com o epitheto de «Formosa», é muito provavel que escolhesse, para sua pousada na cidade, a casa que era do seu dominio directo. Ahi nasceria portanto o Infante D. Henrique, em 1394, a .4 de Março. Todavia essa casa já em 1459 desapparecera, pois havia cahido como se vê pela Carta Regia de 6 de Novembro do mesmo anno, (Livro 4.º de Pergaminhos da Camara do Porto, fol. 74), na qual se manda reedificar a mesma casa, à custa da cidade. por adua, de que nem os Moedeiros nem os sujeitos à Ordem dos Hospitalarios eram dispensados. Foi esta, pois, a primeira reedificação da casa em que nasceu o Infante D. Henrique.

Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT