domingo, 16 de janeiro de 2011

Rosália de Castro. O Rexurdimento: «Um projecto político, concebido dentro do ideário iluminista, que propunha a recuperação da singularidade económica, histórica, linguística e literária da Galiza, até então soterrada sob o domínio político e cultural espanhol, uniu-se uma valorização, de feições românticas, dos sinais identificadores do povo galego»

Cortesia de sensualparnaso 

Momento ímpar de renascimento da literatura galega, o Rexurdimento teve lugar na segunda metade do século XIX, constituindo simultaneamente um fenómeno de extrema importância cultural e política, sobretudo na medida em que alentou os esforços em prol da construção de uma nacionalidade galega. Por esse motivo, começamos este artigo explicitando de que maneira ocorreu este processo e contextualizando as produções poéticas de Rosálía de Castro e Eduardo Pondal neste ambiente sociocultural.

Num momento posterior, concentramo-nos em duas figuras emblemáticas dos projectos literários dos autores mencionados:
  • na poesia rosaliana,
  • a representação da cantora,
  • na obra pondaliana,
  • a representação do bardo.
Apresentamos, neste estágio, as características de cada uma destas figuras, explicitando de que maneira cada uma delas se relaciona com a fundação literária da Galiza, ora no presente, caso da poesia de Rosálía, ora num futuro possível como ocorre na poesia de Pondal. Para cada uma das análises, utilizamos poesias das obras fundamentais destes autores:
  • os Cantares Gallegos de Rosálía de Castro,
  • os Queixumes dos pinos de Eduardo Pondal.
O propósito é, por fim, contribuir para os estudos em torno da cultura e da literatura galega em dois aspectos principais: primeiro, retomando e reconsiderando análises em torno das obras de Rosálía e de Pondal, em relação ao projecto de construção da identidade da Galiza; segundo, contribuindo para a análise de questões mais específicas no interior das obras dos autores mencionados, por meio de uma investigação de elementos fundamentais das suas criações literárias.

Gustavo Adolfo Bécquer
«Oh que amor tão calado que é o da morte! / Que sono o do sepulcro tão tranquilo!»
Cortesia de etudogentemorta
Para se compreender devidamente o contexto no qual se inserem as obras de Rosálía de Castro e Eduardo Pondal, faz-se necessária uma sucinta explanação acerca do contexto cultural e literário da Galiza na segunda metade do século XIX, período no qual ocorreu o chamado Rexurdimento da literatura galega.
Como constatou Gutiérrez Izquierdo, o Rexurdimento ocorreu devido a uma concorrência de factores. A um projecto político, concebido dentro do ideário iluminista, que propunha a recuperação da singularidade económica, histórica, linguística e literária da Galiza, até então soterrada sob o domínio político e cultural espanhol, uniu-se uma valorização, de feições românticas, dos sinais identificadores do povo galego:
  • sua língua,
  • seus costumes,
  • suas tradições.
Os Jogos Florais da Galiza, evento que marca simbolicamente este encontro de factores, ocorreu em 1861. Nele surgiu a primeira antologia poética na qual se faziam presentes autores do então nascente Rexurdimento, em cujas obras encontramos, nas palavras do autor mencionado, «uma temática costumista, rural e paisagística, entendida como reivindicação e procura dos sinais de identidade do povo galego, e a consciência do abandono e marginalização que sofre a Galiza, que se revela na tonalidade dolorosa e na denúncia social de tantos poemas».

Rosália de Castro
(1837-1885)
Cortesia de wikilingue  
Embora o vocabulário político da Europa do início do século XIX já falasse num «princípio de nacionalidade», foi no fim deste século que o termo «nacionalismo» surgiu, sendo utilizado, inicialmente, para designar grupos de ideólogos de direita franceses e italianos que ostentavam a bandeira nacional contra os estrangeiros, os liberais e os socialistas; posteriormente, o termo passou a referir-se a todos os movimentos que consideravam a «causa nacional» como de primordial importância política: mais exactamente, a todos os que exigiam o direito à determinação, ou seja, em última análise, o direito de formar um Estado independente, destinado a algum grupo nacionalmente definido. Este novo nacionalismo político registava uma série de mutações, dentre as quais: a pressuposição de que a autodeterminação e a formação de Estados soberanos independentes não se aplicava somente a nações capazes de demonstrar sua viabilidade económica, política e cultural, mas a qualquer grupo que reivindicasse o título de «nação»; a progressiva tendência para admitir que esta autodeterminação nacional «não podia ser satisfeita por qualquer forma de autonomia inferior à plena independência do Estado»; e a tendência nova para definir a nação em termos étnicos e de línguagem (cf. Hobsbawm 1998: 204, 206).

Nos Cantares gallegos de Rosálía de Castro, a ideia de uma vontade popular enquanto,  para utilizar a terminologia de Miller, síntese de um conjunto de crenças compartilhadas direccionadas para um objectivo comum, inscritas numa historicidade e uma territorialidade específicas (o que configura sua singularidade), assume um lugar central. Detenhamo-nos brevemente em cada um destes aspectos: a história, representada na poesia rosaliana pela tradição e a territorialidade.

Cortesia de aportaverde
Em primeiro lugar, a tradição. Bastante significativas são as duas versões narradas por Manuel Murguía, destacado historiador galego com quem Rosálía se casaria em 1858 que, como veremos, também foi importante na construção do projecto poético pondaliano, para a decisão de Rosálía de escrever em galego. A primeira versão mostra-nos Rosálía exilada em Castela, em 1860 e enfrentando uma espécie de deslocamento geográfico: em meio a terras desoladas, recordando a exuberância dos campos galegos, teria sentido a poetisa necessidade de cantar a sua terra, na sua língua, a fim de romper com tudo o que a cercava. A segunda versão descrita por Murguía, que talvez se possa considerar menos romântica, diz-nos que Rosálía decidira escrever em galego para conferir um status literário à língua galega, a língua de sua família, que via sendo empregada de modo torpe nas composições de outros autores (Carballo Calero, 1981: 159).

Tratar-se-ia, por conseguinte, de restabelecer, neste território da alteridade, uma historicidade particular, através do resgate do vínculo que unia a poetisa à sua terra originária. Por outro lado, na segunda versão, escrever em galego significaria resgatar e revalorizar uma história familiar que, na visão de Rosálía, estava sendo deturpada e corrompida. Uma maneira, enfim, de restabelecer o sentido de uma tradição que estaria sendo paulatinamente perdida.
Ainda a respeito deste ponto, faz-se necessário mencionar as matrizes românticas sobre as quais configuraram-se os Cantares gallegos rosalianos. Destacar aqui apenas duas destas matrizes:
  • as poesias de António de Trueba,
  • as poesias de Gustavo Adolfo Bécquer.
A própria Rosálía de Castro, no prólogo de Cantares Gallegos, reconhece o quanto a sua poesia deve à obra de Trueba. Diz-nos a poetisa:
  • O Libro dos Cantares de don António de Trueba, que me inspirara e dera alento para levar a cabo este trabalho, passa pelo meu pensamento como um remorso, e quase assomam as lágrimas aos meus olhos ao pensar como a Galiza se ergueria até o lugar que lhe corresponde se um poeta como o Antón dos Cantares fosse o destinado para dar a conhecer as suas belezas e seus costumes.
O que desejou Rosálía foi seguir os passos de Trueba, deste modo desvelando um lirismo latente na cultura popular galega.
Na origem da obra-prima rosaliana está, portanto, o projecto de dar voz ao que é percebido como expressão genuína do povo galego, o seu lirismo. Seria, no entanto, um engano crer que há nisto apenas um intento estético. No trecho transcrito do prólogo dos Cantares Gallegos, vislumbramos uma segunda dimensão de seu projecto. Se um poeta como Trueba cantasse as belezas e os costumes galegos, afirmava a poetisa, a Galiza se ergueria até ao seu lugar próprio, o que demonstra um propósito político no projecto rosaliano.

Eduardo Pondal
(1835-1917)
Cortesia de himnogallego
O que significa cantar as belezas e os costumes da Galiza, na própria língua galega?
Significa afirmar as particularidades culturais e linguísticas da Galiza; significa, em última instância, afirmar a singularidade do território galego, o lugar das belezas, e a própria historicidade galega, residente na sua língua». In  Henrique Samin, A construção da Identidade Galega nos discursos poéticos de Rosália de Castro e Eduardo Pondal, Conexão Letras Volume 2, número 2, 2006.

La canción que oyó en sueños el viejo
A la luz de esa aurora primaveral, tu pecho
vuelve a agitarse ansioso de glorias y de amor.
¡Loco...!, corre a esconderte en el asilo oscuro
donde ya no penetra la viva luz del sol.

Aquí tu sangre torna a circular activa,
y tus pasiones tornan a rejuvenecer...
huye hacia el antro en donde aguarda resignada
por la infalible muerte la implacable vejez.

Sonrisa en labio enjuto hiela y repele a un tiempo;
flores sobre un cadáver causan al alma espanto;
ni flores, ni sonrisas, ni sol de primavera
busques cuando tu vida llegó triste a su ocaso.

Cortesia de Conexão Letras/Universidade do Rio de Janeiro/JDACT