quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Bernardim Ribeiro: Menina e Moça. Parte II. «Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe? Que vos comigo e eu convosco, sós soíamos passar nossos nojos grandes, e tão pequenos para os de despois! A vós contava eu tudo. Como vós fostes, tudo se tomou tristeza. nem parece ainda senão que estava espreitando já que vos fôsseis»

Cortesia de tertuliabibliofila

Menina e Moça
Bernardim Ribeiro
Introdução
1. Monólogo da Menina
«Menina e moça me levaram de casa de minha mãi para muito longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era ainda piquena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que despois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, cuitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda.
Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.

Cortesia de fcg
Escolhi para meu contentamento (se em tristezas e cuidados há i algum) vir-me viver a este monte onde o lugar e a míngoa da conversação da gente fosse como já pera meu cuidado cumpria, porque grande erro fora, depois de tantos nojos quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o descanso que ele não deu a ninguém. Estando eu assi só, tão longe de toda a gente e de mim ainda mais longe, donde não vejo senão serras que se não mudam, de um cabo, nunca, e do outro ágoas do mar que nunca estão quedas, onde cuidava eu já que esquecia à desaventura porque ela e depois eu, a todo poder que ambas pudemos, não deixámos em mim nada em que pudesse achar lugar nova mágoa; antes tudo havia muito tempo, como há, que é povoado de tristezas, e com rezão. Mas parece que das desaventuras há mudança para outras desaventuras, que do bem não a havia para outro bem. E foi assi que, por caso estranho, fui levada em parte onde me foram diante meus olhos apresentadas em coisas alheas todas as minhas angústias, e o meu sentido de ouvir não ficou sem sua parte de dor.
( ... )
Cortesia de behappyaveiro
Se em algum tempo se achar este livro de pessoas alegres, não o leam. Que, por aventura, parecendo-lhe que seus casos serão mudáveis como os aqui contados, o seu prazez lhes será menos prazer. Isto, onde eu estivesse, me doeria, porque assaz abastava nacer eu pera minhas mágoas, senão ainda para as doutrem. Os tristes o poderão ler, mas aí não os houve mais homens, depois que nas mulheres houve piedade. Nas mulheres, sim, porque sempre nos homens houve desamor. Mas para elas não o faço eu, que, pois que o seu mal é tamanho que se não pode confortar com outro nenhum, é para as mais entristecer. Sem-razão seria querer euque o lessem elas, mas antes lhes peço muito que fujam dele e de todalas cousas de tristeza.
Que ainda com isto poucos serão os dias que hão-de poder ser ledas, porque assi está ordenado pela desventura com que elas nascem. Para uma só pessoa podia ele ser. Mas desta não soube eu mais parte, depois que suas desditas e minhas o levaram para longes terras e estranhas, onde bem sei eu que, vivo ou morto, o possue a terra sem prazer nenhum.

Cortesia de emulecom
Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe? Que vos comigo e eu convosco, sós soíamos passar nossos nojos grandes, e tão pequenos para os de despois! A vós contava eu tudo. Como vós fostes, tudo se tomou tristeza. nem parece ainda senão que estava espreitando já que vos fôsseis. E porque tudo ainda mais me magoasse, tão-somente não me foi deixado em vossa partida o conforto de saber para que parte de terra íeis, que descansaram meus olhos em levarem para lá a vista. Tudo me foi tirado, no meu mal nem remédio nem conforto houve aí. Para morrer asinha, me pudera isto aproveitar, mas para isto não me aproveitou.
Inda convosco usou desaventura algum modo de piedade em vos alongar desta terra, pois que pera não sentirdes mágoas não havia remédio, para as não ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim, que estou falando e não vejo ora eu que leva o vento as minhas palavras, e que me não pode ourvir a quem falo!» In História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI, Fundação Calouste Gulbenkian 2000.

Cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian/JDACT