sábado, 29 de janeiro de 2011

Os Teatros de Lisboa: Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. «Em S. Carlos não há surpresas. Sabe-se de cór as óperas ... e os camarotes»

Cortesia de Bordalo Pinheiro

Teatro de S. Carlos

Serve só de Inverno, como os capotes. Em se espalhando por todos os lados a melancolia do Inverno, aí abre ele! Já de noite não se trabalha ao ar livre, já vem cedo as horas para o serão. É ainda tempo de fruta, mas já é tempo de névoa.
Vão-se encarquilhando as folhas das árvores; já não cantam os pássaros; adormecem as borboletas; esfriam as noites, compridas como os dias; vê-se entristecer a terra por sentir o que perde, ou de avistar longe de mais a Primavera.
Ainda as flores estão bonitas, mas já não têm aroma. É a hora. Abre ele as portas, soberbo, magnifico, e ao mesmo tempo sem cerimónia. É o teatro da côrte, mas pode, quem quiser, ir vestido para ali como para o quintal. Bom edifício. Sala magnífica. Artistas que têm, entre outras, uma prenda muito agradável para quem não é empresário, serem caríssimos. Nos camarotes, nas plateias, tudo gente conhecida.

Cortesia de Bordalo Pinheiro
Sócrates, pai da filosofia, nunca saía de Atenas. Nós, que não somos menos sábios que ele,—basta sermos todos conselheiros —não saímos nunca de Lisboa, e por isso todos aqui nos conhecemos e saudamos: —Sr. conselheiro! —Caro conselheiro! —Caríssimo conselheiro, e amigo! Adeus para um lado, adeus para o outro. A família portuguesa. Toda a nossa gente; parentes, vizinhos, e amigos. População flutuante?
Dois brasileiros e um inglês.
Muitas senhoras já na plateia, caladas, — mais caladas do que nós, apesar de costumarmos armar-lhe reputação de faladoras. Enquanto os homens grulham, cavaqueiam, cantarolam, interrompem como se fossem deputados ... e estivessem na câmara, estão quietinhas as senhoras, vendo e ouvindo, sem terem de se sujeitar ao preceito estabelecido para as senhoras nos outros países ... de falarem só quatro ao mesmo tempo.


Cortesia de Bordalo Pinheiro 
Em S. Carlos não há surpresas. Sabe-se de cór as óperas ... e os camarotes. Sabe-se que hão de ver-se certas pessoas do lado direito, certas outras do lado esquerdo, o nosso amigo fulano ao fundo. Sabe-se que no segundo intervalo o sr. Sicrano faz uma visita às senhoras Tais, e que a menina Esta vai no segundo acto para o camarote das suas amigas Est'outras.
Sabe-se quem é que não vai ali aos Domingos.
Quem tem uma prima doente.
Quem está de vestido novo.
Sabe-se tudo. Nada nos apanha de surpresa, —e é muito bom assim. As surpresas não prestam. Todos nós o sabemos, e cada um à sua custa. Chegar por exemplo quando não se é esperado — mesmo sem ser marido — é mau; vai  uma pessoa gozando antecipadamente da alegria que julga causar por aparecer de súbito, e por fim o pasmo em que os outros ficam tolhe um pouco o acolhimento que lhe fazem. O prazer da surpresa não passa de ficção. Prazeres esperados, prazeres a que a gente viva habituado são os únicos de que se goza completa e agradavelmente — basta havel-os precedido a esperança e o desejo, tempêros por excelência de todos os gozos.
Nos teatros de declamação vivem sujeitas as peças à moda caprichosa e fugitiva. Tal assunto que deu no goto a toda a gente em certa época, não se suporta noutras...

Cortesia de Bordalo Pinheiro

Só é condão da música escapar a esta lei. Porquê?
Porque há nas óperas o que raras vezes se encontra nas peças declamadas — idealidade, poesia. Nos dramas e nas comédias chamam-se os personagens:
  • Moita,
  • Vasconcellos,
  • Gaudêncio,
  • Ramos...
Nas óperas chamam-se:
  • Ernâni,
  • Tancredo,
  • Genaro,
  • Polion...
Nomes de cheiro! A prosa, que invade tudo, não pôde invadir por enquanto aquele palco.
Dizem-nos as primas-donas e os tenores em descantes admiráveis de brilhantismo e de paixão o que é o amor, a ira, o ciúme, a dor. Não entra naquele tablado das lendas, nem o frack nem o paletot.
Nunca ali se viu um personagem de chapéu de chuva!
É a capa de D. João, os fatos de seda e de veludo, tudo bordado de cores; grandes espadas e grandes plumas! Os personagens são: Imperadores, Pagens, Generais romanos, Damas nobres, Príncipes, Cavalheiros, Trovadores, Reis!

Cortesia de Bordalo Pinheiro 
Nas primeiras recitas de cada época, a maior parte do público está no caso de um homem que queria ser grande figurão, mas, por não saber muito dos usos da sociedade, tomara um criado que sempre havia andado em casas grandes, e dera-lhe ordem de coçar o nariz disfarçadamente, discretamente, para o avisar logo que visse que o amo, como diz o outro, ía dar raia. Dizia por exemplo o homem, estando à mesa, à hora do café, a uma senhora que lhe ficara ao lado: 
Vai um caxarolete, minha senhora?
E o criado principiava a coçar o nariz, de forma que o sujeito ficava de braços erguidos e garrafas no ar —sem se atrever a pô-las outra vez na mesa, nem a deitnr no copo os licores vários que compõem aquela bebida não direi de guerra ... mas de bernarda». In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de Livraria Editora Mattos Moreira, 1874/Bordalo Pinheiro